A liberdade artística protege a liberdade de todos

Guilherme Cezar Coelho é diretor de cinema e fundador da Samambaia.org, organização sem fins lucrativos que apoia o WBO (Washington Brazil Office) e o MOBILE (Movimento Brasileiro pela Liberdade de Expressão Artística). Este artigo foi escrito por ele para a edição 112 do boletim semanal do WBO, publicado em 12 de abril de 2024. Para assinar o boletim e receber gratuitamente, insira seu email no campo abaixo.



Em meio a ataques à democracia, à ciência e ao progresso, garantir a liberdade de expressão artística é fundamental para um mundo melhor. O WBO (Washington Brazil Office) tem a oportunidade de pautar essa discussão internacionalmente.

Uma inestimável contribuição que já existe, é o trabalho realizado pelo Mobile (Movimento Brasileiro Integrado pela Liberdade Artística). Iniciativa da sociedade civil brasileira, o movimento reuniu e analisou casos de censura a artistas no Brasil entre 2016 e 2022. Coisa de quase 300 casos bem documentados.

Expressar uma coisa por outra – isto é, valendo-se metáforas, analogias e símbolos – é talvez a maior invenção humana, pois nos ajuda a compreender e transformar a realidade, guiando nossos sentimentos sobre o mundo.

A liberdade de expressão artística pode ser entendida, metaforicamente, como o sistema imunológico de uma sociedade. Sem seu pleno funcionamento – neste caso, sem a absoluta liberdade para criar, expressar-se, dar ideias e pensar criticamente – adoecemos. “Quem não se comunica, se trumbica.”

É o que vemos hoje em ditaduras, como a chinesa, onde o contraditório está cada vez mais restrito e expressões individuais constrangidas ao padrão arbitrário de seus dirigentes políticos. Não à toa, péssimas decisões econômicas estão sendo feitas, e já se fala de um mundo pós-China. Isto é, a ameaça da dominância chinesa já não é favas contadas. Outros exemplos de ditaduras desastrosas abundam.

No Brasil, os dados do Mobile mostram casos de censura ou intimidação contra expressões artísticas em todas as regiões do país. Os casos não param no período levantado pelo movimento, os governos Temer e Bolsonaro. As diferentes faces da censura continuam a se mostrar pelo Brasil.

Recentemente o livro de Jefferson Tenório, vencedor do Jabuti, foi embargado em escolas públicas de três estados brasileiros. Em Niterói, um show do cantor Johnny Hooker foi cancelado devido a mobilizações a partir de declarações do cantor, em 2018, contra a censura de uma peça de teatro.

Reunião de representantes do Mobile e de outras organizações brasileiras com relatores da Comissão Interamericana de Direitos Humanos para discutir parâmetros regionais para defesa da liberdade artística, em novembro de 2023

Cabe aqui uma reflexão sobre o que é legítimo criticar e combater – e a necessidade de se garantir a livre expressão, por qualquer um. Aqui, o foco é especificamente a expressão artística, que é a mais ousada – pois metafórica – das maneiras de falar sobre o mundo. Talvez seja também, a maneira mais potente de transformá-lo. Por isso, talvez também, ditaduras e imbecis detestam a arte.

“O mundo é o que vem ao caso”, pontificou Ludwig Wittgenstein. Isto é, o mundo é o que escrevemos, cantamos e contamos sobre ele – sobre nós. Artistas inventam a vida pois inventam a representação da vida; inventam como experienciamos o mundo.

Expressar uma coisa por outra é exatamente o trabalho do artista. Pensar o mundo e nossas subjetividades, de maneira metafórica, análoga ou simbólica, é o que esperamos da arte como amálgama humano, nos dando um mapa mental sobre como viver. Ao representar o mundo, e se representar no mundo, a artista capta – e ao mesmo tempo – cria o mundo. Garantir esta liberdade é garantir o futuro, pois com a liberdade de expressão artística continuamente o inventamos.

O WBO se lança agora no centro deste debate, buscando propostas de legislação internacional em defesa da liberdade de criação artística. Um arcabouço legal que proteja os criadores e suas obras contra ataques dos governantes de ocasião, principalmente em um mundo que vive o sobressalto dos extremismos.

Para alcançar esse objetivo, precisamos fomentar o intercâmbio de informações, intensificar o relato de violações e traçar caminhos para a formulação de princípios internacionais que protejam legal e economicamente os artistas, profissionais da cultura e grupos e coletivos das artes.

Como apontou o WBO, entre os diferentes tipos de ameaças detectadas estão a censura estatal, o estrangulamento ou direcionamento político e moral de recursos públicos para o financiamento do setor e as campanhas públicas de perseguição e de difamação de profissionais da cultura por parte de partidos políticos, grupos, organizações religiosas e indivíduos da sociedade civil.

É aqui que entram as contribuições dos casos de censura reunidos pelo Mobile (Movimento Brasileiro Integrado pela Liberdade Artística). Devemos unir forças.

Faço minhas as palavras de Paulo Abrão, diretor executivo do WBO: “A expressão artística e cultural deve ser um terreno de ampla liberdade e, para que isso aconteça, é necessária a adoção de parâmetros que estabeleçam e protejam o setor diante do assédio que se forma especialmente com a emergência de novos governos autoritários.”

Precisamos estruturar normas, diretrizes e parâmetros internacionais e começar a trabalhá-los primeiramente no âmbito do Sistema Interamericano de Direitos Humanos, para depois avançar em nível mundial. Tomemos como exemplo o que já aconteceu de forma positiva com o avanço das normas, recomendações e jurisprudência em matéria de liberdade de expressão jornalística e de imprensa, dentro da OEA.

Na construção desse arcabouço legal, devemos pensar nos princípios estruturantes sobre os direitos dos artistas e agentes da cultura, tendo como objetivo a igualdade de gênero, raça e o respeito pela diversidade.

Uma legislação que traga proteção aos direitos autorais e à propriedade intelectual frente à inteligência artificial generativa, e novas tecnologias, e que definitivamente proteja artistas da repressão de agentes estatais e não estatais.

Há muito a fazer, com criatividade. Criar um sistema de proteção à liberdade de expressão artística é uma garantia de vida melhor para todos.


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