Torturas das prisões do Brasil expostas na ONU

Nana Oliveira é advogada criminalista há 22 anos e, desde 2007, gestora e fundadora da Assessoria Popular Maria Felipa, onde coordena o projeto Solta Elas, que busca o desencarceramento de mães e mulheres. De 2023 a janeiro de 2024 foi coordenadora-geral de Combate à Tortura e a Graves Violações de Direitos Humanos do Ministério de Direitos Humanos e Cidadania do Governo Federal. Este artigo foi escrito por ela para a edição 107 do boletim semanal do WBO, publicado em 15 de março de 2024. Para assinar o boletim e receber gratuitamente, insira seu email no campo abaixo.


No Dia das Mulheres, 8 de março, a APMF (Assessoria Popular Maria Felipa), em parceria com o Instituto Ibase (Instituto Brasileiro de Análises Sociais e Econômicas) e o WBO (Washington Brazil Office) denunciou na 55ª Sessão do Conselho de Direitos Humanos das Nações Unidas, em Genebra, na Suíça, a fome, a sede, as torturas e os maus tratos nos presídios e na justiça do estado de Minas Gerais. 

A denúncia ocorreu no espaço dedicado ao diálogo interativo sobre tortura. Este momento serve para que a relatora especial exponha seu trabalho anual. Na sequência, os Estados-partes da ONU apresentam suas manifestações sobre a temática. Na etapa final do diálogo, dez entidades da sociedade civil participam – etapa na qual deu-se a intervenção da Maria Felipa, perante os mais de cem representantes de Estados que compõem a ONU.

Em nossa exposição destacamos a ocorrência de “violações sexuais, a aplicação desarrazoada de penalidades por indisciplina e as transferências de presos de uma prisão a outra como instrumentos para silenciar quem denuncia torturas. O Ministério Público e o Poder Judiciário brasileiros guardam silêncio ante essas denúncias”, ressaltou para a comunidade internacional a representante da Assessoria Popular Maria Felipa a advogada popular Isabela Corby.

A estratégia usada nesse diálogo interativo foi a de usar um mecanismo chamado “Apelo Urgente”. Por meio dele, foi apresentado o caso de uma vítima chamada Soraia, que é mãe de três filhos – um de 5 meses, um de 4 anos e outro de 11 anos. Ela fazia tratamento contra diabetes, hipertensão, disfunção cardíaca e esquizofrenia.

Soraia foi presa nos últimos meses de gravidez, em 2023. A vítima defendeu o ex-companheiro em uma briga física, durante uma crise de uso abusivo de crack, esfaqueando o agressor. O ferimento causou morte. Ela foi condenada no artigo que tipifica homicídio. Hoje cumpre pena no Presídio Belo Horizonte 1, mais conhecido como Presídio Inspetor Estevão Pinto, PIEP. Ela cumpriu uma parte da prisão no centro de gestantes de Vespasiano, também em Minas Gerais. O filho nasceu na prisão. A mãe o amamentou apenas por duas semanas, embora a legislação preveja período mínimo de seis meses.

É importante registrar que o Mecanismo Nacional de Prevenção e Combate à Tortura (MNPCT) inspecionou esse presídio chamado PIEP em Belo Horizonte, onde a vítima cumpre pena. Em 2021, e o relatório do MNPCT apontou várias situações estruturais de tortura e maus-tratos que estão sem providências de acordo com o relato das sobreviventes do presídio. A PIEP registrou pelo menos 12 suicídios desde a última inspeção. Além de suicídios, houve tentativas de suicídio e autoflagelação. A unidade possui celas insalubres, sem ventilação adequada, onde há restrições de alimentação e água e negligência com a saúde.

Neste caso, a mãe não pôde opinar no processo de guarda por discriminação por ser pessoa com sofrimento mental, sendo-lhe suprimido o direito à maternidade, à saúde e à ampla defesa no processo. Ela nunca foi encaminhada para atendimento adequado de saúde mental, ainda que exista um programa específico em Minas Gerais, o Programa de Atenção Integral ao Paciente Judiciário Portador de Sofrimento Mental (PAI-PJ), criado pelo Tribunal de Justiça de Minas Gerais. 

Também foi negado a ela um pedido de prisão domiciliar via habeas corpus. Os argumentos para a negativa foram seus antecedentes e a periculosidade do ex-companheiro, o pai. A prisão acabou virando, nesse caso, uma estratégia de proteção à mulher vítima de violência doméstica, aliada à desconsideração da importância fundamental para o desenvolvimento da criança em contato com a pele, odor e voz da mãe.

Tudo que essa mulher e mãe vem vivenciando no sistema judiciário brasileiro, infelizmente tem sido comum. A forma natural como se dá a relativização de direitos tem sido algo constante no caso das mulheres – e não apenas no caso das mulheres presas.

Relembramos as Regras de Bangkok, que recomendam que “antes ou no momento da prisão, as mulheres com responsabilidades de cuidado de crianças serão autorizadas a tomar providências para essas crianças, incluindo a possibilidade de uma suspensão razoável  da  detenção,  tendo  em  conta o melhor interesse das crianças”. E a regra 29 de Mandela, segundo a qual “a  decisão  de  permitir  que uma criança permaneça com os seus pais na prisão deve  basear-se no superior interesse da criança em causa”.

O caso apresentado neste Apelo Urgente é um exemplo do que ocorre na estrutura do sistema prisional feminino. É um caso que mostra o funcionamento do Sistema de Justiça Criminal brasileiro – um sistema absolutamente apartado da realidade. 

Soraia não é uma exceção, mas uma regra, que eventualmente é atingida por alguma exceção.  

O sistema de justiça criminal brasileira tem em uma ponta a Polícia Militar e na outra o sistema prisional. A Assessoria Popular Maria Felipa entende que sua atuação é uma ação de redução dos danos causados por este sistema, pois a partir do momento em que uma pessoa é abordada pela Policia Militar, a tortura e os tratos cruéis, desumanos ou degradantes têm início, e não irão cessar, pois as instituições que deveriam funcionar como contenção a essas práticas ignoram essas violações, em nome do “combate ao crime” ou do “combate às organizações criminosas”. No Brasil, qualquer grupo de três pessoas pode receber o pomposo título de “organização criminosa”, e, a partir desse título, os direitos e garantias fundamentais, também chamados de direitos humanos, são suspensos na prática.

De forma muito direta, o Brasil se assemelha mais a uma “Gotham City”, onde os pobres e vulnerabilizados serão, cedo ou tarde, alcançados pelo sistema de justiça criminal pelo simples fato de existirem. A decisão sobre esse ou aquele tipo penal é apenas uma máscara necessária para manter o controle sobre o povo brasileiro, seja pelo temor ou pelo desejo de se diferenciar da “ralé brasileira” como bem dito pelo sociólogo Jessé de Souza.

Seguimos na busca incessante pela liberdade de mulheres e pessoas LGBTQIAPN+. Não acreditamos que o cárcere seja uma medida de segurança pública para quem quer que seja, ainda mais nos parâmetros brasileiros. É imperioso que a sociedade brasileira racionalize o debate sobre a Segurança Pública. 

O caso apresentado segue com a equipe jurídica e psicossocial da APMF, que foi responsável pelo Apelo Urgente. A intenção não é apenas de promover a reparação e a segurança “apenas” desta vítima, mas também das mais de 300 vítimas de tortura ou maus tratos acolhidas todo ano pela organização, assim como seus mais de mil familiares. 

A pessoa que sofre tortura no sistema prisional brasileiro e denuncia, não recebe qualquer proteção do aparato estatal, uma vez que não se enquadra nas normativas que regulam o programa para defensores de direitos humanos, comunicadores e ambientalistas (PPDH) ou para o Programa de Proteção a Vítimas e Testemunhas ameaçadas. Na verdade, ocorre uma revitimização de quem denuncia, pois a pessoa se torna alvo de mais violências e omissões. Além disso, corre o risco de cumprir processos disciplinares como represália, resultando em mais aprisionamento. 

Apresentar o caso da Soraia ao Sistema ONU é uma ação necessária para visibilizar pera o governo do Brasil e de Minas Gerais a necessidade de um programa para proteção das vítimas de tortura que denunciam torturas contra o sistema prisional e permanecem sob a guarda dele, como uma estratégia de prevenção e combate à tortura.


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