Debate sobre liberdade de expressão e o papel das plataformas digitais no Brasil exige rigor técnico e conhecimento qualificado

Comunicado do WBO
19 de abril de 2024

O WBO (Washington Brazil Office) manifesta preocupação com o fato de que a Comissão Judiciária da Câmara dos Deputados dos EUA possa estar assumindo posicionamentos públicos acerca da realidade política e jurídica do Brasil sem o respaldo de informações confiáveis em relação às medidas que a Corte Suprema (Supremo Tribunal Federal do Brasil) tem adotado para proteger a qualidade da democracia brasileira.

Uma distorção de aspectos da realidade brasileira ficou clara na carta que a Comissão enviou ao presidente dos EUA, Joe Biden, na última quarta-feira, dia 17 de abril. No documento, a Comissão tornou públicas diversas decisões judiciais mantidas em sigilo em razão das investigações em curso sobre a tentativa de golpe e ataques às instituições democráticas perpetradas no Brasil. Essas decisões vêm sendo tomadas pelo juiz da Corte Suprema Alexandre de Moraes.

Um dos argumentos da Comissão americana é de que as ordens de Moraes não são acompanhadas de fundamentação. No dia 18 de abril, o Supremo Tribunal Federal publicou uma nota na qual esclareceu que as ordens tornadas públicas pela Comissão "não se tratam das decisões fundamentadas que determinaram a retirada de conteúdos ou perfis, mas sim dos ofícios enviados às plataformas para cumprimento da decisão". O Supremo brasileiro disse ainda que "fazendo uma comparação, para compreensão de todos, é como se tivessem divulgado o mandado de prisão (e não a decisão que fundamentou a prisão) ou o ofício para cumprimento do bloqueio de uma conta (e não a decisão que fundamentou o bloqueio)". 

“A carta da Comissão Judiciária da Câmara dos Deputados dos EUA distorce aspectos da realidade brasileira e, por isso, ficou claro que há grupos de interesse induzindo a erro e a uma leitura tendenciosa por parte dessa importante Comissão”, diz Paulo Abrão, professor doutor em direito, que foi secretário-executivo da CIDH (Comissão Interamericana de Direitos Humanos), diretor do Instituto de Direitos Humanos do Mercosul e secretário nacional de Justiça e hoje é diretor-executivo do WBO.

Para ele, “a Comissão tornou públicas diversas decisões da Corte Suprema brasileira mantidas em sigilo em razão das investigações em curso sobre a tentativa de golpe contra a democracia e outros graves crimes previstos na legislação do Brasil. Isso foi uma manobra induzida por membros da oposição de extrema direita brasileira para fragilizar as investigações dos crimes cometidos dentro do país. É uma clara estratégia de impunidade deles”.

“Não se tratam das decisões fundamentadas que determinaram a retirada de conteúdos ou perfis, mas sim dos ofícios enviados às plataformas para cumprimento da decisão”

Nota do Supremo Tribunal Federal

Uma tentativas anterior de influenciar o Congresso americano e outras instituições de direitos humanos com sede nos EUA a respeito de uma visão de que no Brasil há violação à liberdade de expressão por exigir que as plataformas digitais bloqueiem conteúdos de informações ilícitas já havia sido bloqueada pela Tom Lantos Human Rights Commission, na Câmara dos Deputados do0s EUA, no último mês. 

Pedro Kelson, coordenador do Programa de Democracia do WBO, considera que desta vez, foi a “a Comissão Judiciária da Câmara dos Deputados dos EUA a instituição instrumentalizada por este grupo de interesse para vazar dados sigilosos da justiça brasileira concernentes à tentativa de golpe de Estado, que tem como objetivo tentar desmoralizar as investigações de responsabilizações contra os ataques ao Estado Democrático de Direito do Brasil com informações incompletas e superficiais sobre a realidade brasileira”.

“Estou incrivelmente impressionada com o compromisso do governo brasileiro e de especialistas em direitos digitais, que estão trabalhando para responsabilizar a indústria de tecnologia, apesar da tentativa de uma empresa privada sediada nos EUA de distorcer os fatos e minar a segurança pública. O Brasil deve continuar a lutar pela sua própria integridade territorial contra as Big Tech, cujo interesse principal não reside no que é bom para o Brasil, mas sim no que é bom para encher os seus próprios bolsos, lucrando com os danos e distorções online”, disse também Kristina Walfore, diretora de Inovação e Projetos Globais na Reset e cofundador da #ShePersisted.


Como um think tank apartidário e independente que pensa e difunde análises e práticas da sociedade civil brasileira junto à opinião pública internacional o WBO considera pertinente trazer à luz informações e observações produzidas por especialistas em aspectos políticos e judiciais do Brasil e aspectos vinculados às liberdades individuais e das responsabilidades judiciais de todos os que gozam dessas liberdades no Brasil, que ajudam a compreender as complexidades do caso.


Fabio Sa e Silva: “o Brasil não tem nada parecido com a Primeira Emenda da Constituição dos EUA”

Fabio Sa e Silva, pesquisador associado do WBO, além de professor assistente de Estudos Internacionais e Wick Cary Professor de Estudos Brasileiros na Universidade de Oklahoma, onde também é co-diretor do OU (Oklahoma University) Center for Brazil Studies.

“Em primeiro lugar, o Brasil não tem nada parecido com a Primeira Emenda da Constituição dos EUA. No Brasil, a ‘liberdade de expressão’ encontra limites na proteção de outros bens jurídicos individuais, como a honra; ou coletivos, como a segurança e o equilíbrio eleitoral. Além disso, o Judiciário brasileiro tem respaldo legal e independência judicial para determinar o bloqueio a perfis e postagens nas redes sociais, o que pode se dar legalmente em três casos”, enumera Fabio de Sa e Silva, pesquisador associado do WBO, além de professor assistente de Estudos Internacionais e Wick Cary Professor de Estudos Brasileiros na Universidade de Oklahoma, onde também é co-diretor do OU (Oklahoma University) Center for Brazil Studies.

O primeiro caso, enumera Sa e Silva, é “quando perfis ou postagens forem meio para o cometimento continuado de ilícitos – desde eleitorais e contra o estado democrático de direito, até casos seríssimos como pedofilia, exploração sexual de crianças e adolescentes e incitação de violência em escolas”.

O segundo caso é quando o bloqueio de perfis e postagens é usado “como alternativa à prisão preventiva, que se justifica para a ‘garantia da ordem pública, da ordem econômica, por conveniência da instrução criminal ou para assegurar a aplicação da lei penal’”.

Por fim, ele explica que esses bloqueios podem ser feitos como parte “dos poderes gerais de cautela, atribuídos a juízes pela lei processual” no Brasil e, “embora seja possível pensar em exemplos de postagens ou contas de que foram banidas e que não se encaixam nessas hipóteses, é muito fácil pensar em postagens ou contas que se encaixam”, conclui Sa e Silva.


 André Pagliarini: “Ninguém está sendo preso por compartilhar sua opinião no Brasil”

André Pagliarini, pesquisador associado do WBO, fellow na Quincy Institute for Responsible Statecraft, e professor assistente de História no Hampden-Sydney College, na Virgínia

“Forças de extrema direita brasileira estão conspirando para convencer a opinião pública estrangeira de que o Brasil está sob um regime de censura que viola a liberdade de expressão. O que, na verdade ocorre é que, as autoridades brasileiras – principalmente o ministro do Supremo Tribunal Federal Alexandre de Moraes – têm procurado limitar o alcance de certas contas de mídia social para conter a disseminação desenfreada e contínua de desinformação e o apoio às perigosas ações antidemocráticas que culminaram na insurreição de 8 de janeiro de 2023 em Brasília. Gritar ‘censura’, como têm feito consistentemente os apoiadores radicais do ex-presidente Jair Bolsonaro evoca deliberada e dissimuladamente imagens do passado ditatorial do Brasil. Há muito que está claro para os observadores interessados na preservação das instituições democráticas do Brasil que o seu objetivo dessas pessoas tem sido o de autoproteger-se e de fazer oposição política ao atual governo de Lula da Silva”, diz André Pagliarini, pesquisador associado do WBO, fellow na Quincy Institute for Responsible Statecraft, e professor assistente de História no Hampden-Sydney College, na Virgínia.

Para ele, “em momentos como este, com riscos de ingerência política tão altos e de estremecimento na relação entre os dois países, vale a pena ser categórico: o Brasil hoje é uma democracia pluralista robusta. Afirmar o contrário joga diretamente a favor daqueles que desejam subverter o governo democraticamente eleito da maior nação da América Latina e da quarta maior democracia do mundo. As redes sociais não são a praça pública. Existem inúmeros outros caminhos de autoexpressão para indivíduos que desejam expressar seus pontos de vista. Ninguém está sendo preso por compartilhar sua opinião no Brasil. Ninguém está sendo torturado ou exilado por causa de suas ideias.”


David Nemer: “imunidade (das Big Techs) não é absoluta, uma vez que o Artigo 19.º introduz um quadro diferenciado para responsabilizar os fornecedores de aplicações Internet em circunstâncias específicas”

David Nemer, pesquisador associado do WBO, doutor em Computação, Cultura e Sociedade pela Indiana University, mestre em Antropologia pela University of Virginia e em Ciência da Computação pela Saarland University, além de professor assistente de Estudos de Mídia e membro do corpo docente afiliado em estudos latino-americanos na Universidade de Virgínia, professor associado do Berkman Klein Center da Universidade de Harvard e Acadêmico Afiliado do Laboratório do Brasil da Universidade de Princeton.

“O Marco Civil da Internet (Lei nº 12.965, promulgada em 23 de abril de 2014)  é a norma jurídica que regulamenta o uso da Internet no Brasil. Essa lei consegue isso estabelecendo princípios, garantias, direitos e deveres para os usuários da Internet, bem como delineando diretrizes para a intervenção do Estado. A lei visa criar um ambiente digital equilibrado e inclusivo ao abordar temas cruciais como a neutralidade da rede, a privacidade, a retenção de dados, a função social da Internet, a liberdade de expressão e a responsabilidade civil dos prestadores de serviços”, explica David Nemer, pesquisador associado do WBO, doutor em Computação, Cultura e Sociedade pela Indiana University, mestre em Antropologia pela University of Virginia e em Ciência da Computação pela Saarland University, além de professor assistente de Estudos de Mídia e membro do corpo docente afiliado em estudos latino-americanos na Universidade de Virgínia, professor associado do Berkman Klein Center da Universidade de Harvard e Acadêmico Afiliado do Laboratório do Brasil da Universidade de Princeton.

De acordo com ele, “os artigos 18 e 19 do Marco Civil são particularmente significativos, pois descrevem explicitamente disposições relativas à remoção de conteúdo e responsabilidades civis. O Artigo 18 estabelece as bases ao isentar os provedores de serviços de Internet de danos civis decorrentes de conteúdo de terceiros. Esta disposição reconhece o papel dos fornecedores como meros canais, destacando a sua falta de envolvimento na criação de conteúdos. No entanto, esta imunidade não é absoluta, uma vez que o Artigo 19.º introduz um quadro diferenciado para responsabilizar os fornecedores de aplicações Internet em circunstâncias específicas”.

Nemer segue explicando que “o Artigo 19 enfatiza o princípio da liberdade de expressão, ao mesmo tempo que reconhece a necessidade de combater o conteúdo ilegal - o Artigo 19 vai além da Seção 230 (47 U.S.C. § 230), pois pode responsabilizar os provedores de Internet pelo conteúdo se não seguirem as ordens judiciais. Especifica que os fornecedores de aplicações de Internet só podem ser responsabilizados civilmente se não cumprirem uma ordem judicial para remover conteúdos específicos considerados ilegais. A inclusão de um requisito de ordem judicial serve como salvaguarda contra a censura arbitrária, garantindo a preservação do devido processo e da supervisão judicial”.

Ele conclui dizendo que “além disso, nuances adicionais são elucidadas em seções subsequentes da lei. A Seção 1 exige a identificação clara de conteúdo infrator em ordens judiciais para evitar ambiguidade ou exagero. A Secção 2 sublinha a importância de defender a liberdade de expressão, especialmente em casos de violação de direitos de autor. A Seção 3 estabelece um mecanismo para resolver rapidamente disputas de compensação relacionadas a conteúdos que afetem a honra, a reputação ou os direitos de personalidade, enfatizando assim a acessibilidade da justiça para todos.”


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