Arthur Lira, o deputado que achava que era primeiro-ministro

Graziella Testa é doutora em Ciência Política pela USP e professora da Escola de Políticas Públicas e Governo da Fundação Getulio Vargas. Foi pesquisadora visitante na Universidad Nacional de San Martín e na Universidade de Harvard. É colaboradora da Fundação Konrad Adenauer e integrante do Legis-Ativo/Estadão, onde também apresenta podcast sobre o Legislativo. É colunista do portal da Revista Problemas Brasileiros e da Agência Estado. É consultora  de risco político  para os setores financeiro e varejo. Pesquisadora na área de política brasileira, com foco em estudos legislativos e instituições informais. Este artigo foi escrito por ele para a edição 72 do boletim semanal do WBO, de 23 de junho de 2023. Para assinar o boletim, basta inserir seu email no formulário no rodapé do artigo.


Os sinais trocados do primeiro ano do terceiro mandato do presidente Lula podem confundir quem se propõe a analisar a política brasileira. Após uma aprovação tranquila de um tema tão relevante quanto o arcabouço fiscal, o presidente Lula sofreu para aprovar uma legislação simples como a da definição ministerial. Nesse artigo, falamos um pouco do desenho institucional do presidencialismo brasileiro e das mudanças que sofreu a relação entre Executivo e Legislativo nos últimos cinco anos no Brasil. Argumentamos que análises mais rasas têm enfocado o fortalecimento do Legislativo diante do Executivo mas o maior desafio de Lula não é a força do Congresso mas sim o grau de centralização do poder nas mãos do presidente da Mesa.

Construir governabilidade nunca é uma tarefa tranquila para governos minoritários mas em sistemas multipartidários esse desafio é ainda maior. O modelo presidencialista brasileiro é diferente do americano por que escolhemos associá-lo ao sistema eleitoral proporcional, que gera incentivos para que o sistema partidário comporte vários partidos. Mais do que isso, o número de partidos políticos no Brasil aumentou paulatinamente ao longo da Nova República, tendo chegado a 30 partidos em 2018. Isso significa que o presidente eleito precisa necessariamente fazer alianças com outros partidos, alguns inclusive que foram seus adversários durante a campanha eleitoral. Há ainda duas características que interferem nessa governabilidade: a primeira é a presença de partidos políticos com pouco apego a posicionamentos ideológicos e mais preocupados com levar recursos para seus redutos eleitorais, o chamado "centrão”. A segunda é o formato constitucional que adotamos e a prática de constitucionalização de políticas públicas, que faz com que decisões corriqueiras precisem de quóruns mais altos para serem aprovadas.

Recentemente, o assunto do suposto fortalecimento do Legislativo ante o Executivo apareceu em diferentes fontes jornalísticas e se tornou quase senso comum. Desde análises conjunturais que creditam o fenômeno a Arthur Lira, o Presidente da Mesa da Câmara dos Deputados, até interpretações mais exageradas e definitivas que falam em um “semipresidencialismo de fato”. A falácia é que o Executivo cada vez mais perde poder para o Legislativo e que depende dele para governar. Nosso argumento é o de que o fortalecimento do Legislativo foi consequência do perfil do presidente Jair Bolsonaro, que não tinha ambição de política pública. Por outro lado, a centralização dos trabalhos do Legislativo é uma realidade que dificulta a relação entre Executivo e Legislativo.

O Legislativo assume papel de relevo e autonomia para responder aos inúmeros desafios impostos pela pandemia e diante de um Executivo inerte e negacionista do presidente Jair Bolsonaro
— Graziella Testa

Um primeiro ponto que precisa ser colocado é que o Legislativo sempre teve importância central na formação de governo e desenho de políticas públicas no Brasil. Desde a promulgação da Constituição de 1988, o Congresso Nacional teve papel inescapável para os governantes eleitos para o Executivo, ainda que o poder de agenda tenha pendido para o presidente da República, que inicia a maior parte da legislação aprovada na Casa. Na literatura em ciência política não é novidade que o Legislativo tem peso relevante e a figura dos partidos é fundamental na construção da coalizão, isto é – grupos de partido que optam por compor a base do governo e compartilham com o chefe de governo a priorização de temas e implementação de políticas públicas. O Legislativo chega a se utilizar das prerrogativas formais de agenda do presidente, como o poder de decreto presidencial, para aprovar pauta própria. Nenhum desses fenômenos é novo ou pode ser creditado a qualquer presidente da Mesa ou presidente da república.

Há, no entanto, algumas mudanças relevantes na relação entre Executivo e Legislativo nos últimos cinco anos. A primeira que precisa ser ressaltada é a atuação do Congresso Nacional durante o afastamento social em consequência da pandemia da covid. Por um lado, o Legislativo assume papel de relevo e autonomia para responder aos inúmeros desafios impostos pela pandemia e diante de um Executivo inerte e negacionista do presidente Jair Bolsonaro. A segunda mudança é a centralização dos trabalhos no Congresso. Durante o afastamento social, o Legislativo fica reduzido ao Plenário, sem funcionamento das comissões e demais arenas internas, que são os principais espaços para inclusão das demandas dos congressistas e da sociedade civil. Ocorreram, portanto, dois processos em paralelo: por um lado o Legislativo ocupa um vácuo de poder deixado pelo Executivo e, por outro, o funcionamento das Casas legislativas é centralizado na Plenário e, portanto, no Presidente da Mesa.

A eleição de Lula mexeu nesse equilíbrio. O perfil mais “policy-oriented” de Lula entrou em choque com os grandes poderes dos quais gozava Arthur Lira, presidente reeleito da Câmara dos Deputados e antigo apoiador de Jair Bolsonaro. Por outro lado, a principal ferramenta usada por Bolsonaro para construir coalizão, o chamado “orçamento secreto”, foi julgada inconstitucional pelo Supremo Tribunal Federal em janeiro de 2023. Lula busca construir sua coalizão por intermédio dos líderes partidários ao invés do presidente da Mesa e para tanto tem duas ferramentas: o compartilhamento de pastas ministeriais com partidos ideologicamente distantes do Partido dos Trabalhadores ou a distribuição de emendas parlamentares ao orçamento para construção de maiorias ad hoc em casos específicos. Os dois remédios são amargos e certamente vão resultar em perda de popularidade, além da resistência de Arthur Lira. Não está claro qual caminho Lula irá seguir nem quais aliados improváveis ele irá abraçar. O que sabemos é que da governabilidade depende a estabilidade democrática, o bem mais precioso que podemos almejar.


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