Impressões de um trabalho de campo em Roraima

Sofia Cavalcanti Zanforlin é professora e pesquisadora em Comunicação da Universidade Federal de Pernambuco (UFPE), membro do Núcleo Migra -Migrações, Mobilidades e Gestão Contemporânea de Populações / DCOM-DCG- UFPE, coordenadora do Grupo de Trabalho Diaspora and Media do IAMCR e doutora pela Escola de Comunicação da Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ). Este artigo foi publicado por ela originalmente no site do jornal Le Monde Diplomatique Brasil no dia 26 de janeiro, e gentilmente cedido para reprodução na edição 59 do boletim semanal do Washington Brazil Office (WBO) de 24 de março de 2023.


Dados da Organização Internacional para as Migrações (OIM) mostram que 5,6 milhões de venezuelanos deixaram seu país desde 2015. Entre janeiro de 2017 e agosto de 2021, o Brasil acolheu 635.257 venezuelanos, depois do fluxo disparar 922% no biênio anterior. O governo brasileiro adotou a estratégia de abrigar e interiorizar os venezuelanos a partir da criação da Operação Acolhida (OPA), em 2018. A ação é levada a cabo pelo Exército Brasileiro, a Organização das Nações Unidas (por meio do Alto Comissariado das Nações Unidas para Refugiados, o Acnur, e da Organização Internacional para as Migrações, a OIM) e ONGs que atuam no acolhimento em Roraima e em estados de diferentes regiões que recebem os migrantes.

Esse contexto motivou a execução de pesquisa conjunta das Universidades Federais de Pernambuco (UFPE) e de Roraima (UFRR) para trabalhar com um conceito alongado de fronteira, para discutir a aproximação entre gestão militar e economia humanitária e também para ouvir migrantes, refugiados em Roraima e os interiorizados pela OPA.

Durante os dez primeiros dias de setembro de 2022, pesquisadoras da UFPE e da UFRR estiveram em trabalho de campo em Boa Vista e Pacaraima. A pesquisa “Fronteiras da mobilidade no Brasil contemporâneo: comunicação e experiência migrante na securitização do acolhimento e da integração social no âmbito da Operação Acolhida”, financiada pelo Conselho Nacional de Desenvolvimento Científico e Tecnológico (CNPq), possibilitou que as pesquisadoras estivessem em ocupações e abrigos e permitiu a descoberta de um paradoxo do posicionamento político dos venezuelanos contatados.

As respostas às entrevistas seguiram aproximadamente o mesmo roteiro: reconhecem-se a importância e as mudanças sociais empreendidas durante a permanência do Chavismo na Venezuela e apontam-se as degradações ocorridas nos últimos anos, após a morte de Hugo Chávez, em 2013, e a ascensão de Nicolás Maduro ao governo, incluindo suas parcerias militares e milicianas, com grupos envolvidos com o narcotráfico e a mineração. Após os entrevistados serem questionados sobre o futuro do cenário político no Brasil, ainda às vésperas do primeiro turno das eleições no Brasil, em 2 de outubro de 2022, a resposta era: “apoiamos Bolsonaro.”

Segundo os interlocutores, caso Luiz Inácio Lula da Silva – que é parecido com Chávez, mas é apoiador de Maduro – saísse vencedor no pleito, ocorreria no Brasil o mesmo que ocorre hoje na Venezuela. “Para onde iremos?”, se questionam. Para eles, permanecer “do jeito que está” parecia ser o mais seguro. Além disso, apontavam-se razões que circularam nas rádios, nas redes sociais e nos grupos de WhatsApp: “Lula expulsará os migrantes venezuelanos do Brasil, assim como encerrará as atividades da OPA na fronteira.”

Os migrantes que chegam pela fronteira são documentados, abrigados no chamado de pedagogia neoliberal: as soluções duradouras apresentadas pelas ONGs e pelo Acnur passam todas pela formatação de uma subjetividade empreendedora, logo, individualista e apagadora de complexidades sociais
— Sofia Zanforlin

É importante salientar que os entrevistados impressionavam pela eloquência e pela complexidade das análises que faziam sobre o contexto político, econômico e social sobre a Venezuela, sobre as condições e experiência com o abrigamento e o trabalho das ONGs e das organizações humanitárias. Vale salientar que, quando diziam que o Brasil se tornaria a Venezuela, mostravam também as reformas sociais que serão combatidas por meio de sanções econômicas e que vão deteriorar o cenário político e social no Brasil. Essas mesmas pessoas, no entanto, pareciam ser vítimas fáceis das mentiras sobre a expulsão peremptória de migrantes. Durante o diálogo, ao serem confrontados com as semelhanças entre o bolsonarismo – sintetizadas pelo apoio à participação militar no governo e pela defesa da relação com as milícias – com o governo Maduro, as respostas poderiam ser sintetizadas com o silêncio ou com a anuência reflexiva. Ao apontarmos que no governo Lula, a legislação migratória começou a ser modificada – até 2016, vigorava a Lei de Estrangeiro, que criminalizava as migrações –, que houve anistia em 2009, durante o segundo governo Lula, além da instituição do visto humanitário, novamente, as respostas eram o silêncio e as reflexões.

O quadro aponta para algumas questões sobre a importância de se trabalhar a cidadania prestando atenção ao funcionamento do campo comunicacional: migrantes estão igualmente imersos no ecossistema midiático, que o pesquisador Muniz Sodré conceitua como bios midiático, caracterizado pelas junções entre o mercado, a financeirização e a retração de políticas públicas conduzidas pelo Estado. Esse ecossistema institui a escala informacional a um novo patamar, uma vez que se soma à experiência vinculativa do comum contemporâneo uma esfera pública inflamada desde as últimas eleições majoritárias de 2018 por mentiras que circulam em redes oficiais e no submundo das fake news.

Importante também levar em conta qual é a experiência que guia as presenças migrantes no Brasil. Em sua maioria, os migrantes que chegam pela fronteira são documentados, abrigados no chamado de pedagogia neoliberal: as soluções duradouras apresentadas pelas ONGs e pelo Acnur passam todas pela formatação de uma subjetividade empreendedora, logo, individualista e apagadora de complexidades sociais; já a interiorização, dá-se por meio de trabalhos precarizados, notadamente para frigoríficos, nas chamadas vagas de trabalho “sinalizadas”, que urgem serem investigadas. “A crise está dentro da cabeça de cada um” foi uma frase emblemática ouvida também em campo de migrantes que conseguem se manter por meio de seus negócios. Esses negócios passam pela experiência física de um ponto de venda de comida, pelo trabalho como influenciador ou como intermediário no envio de remessas em redes sociais.

Apesar de os migrantes não terem direito ao voto no Brasil, fazem parte da sociedade brasileira e são foco de grupos da extrema direita. Alimentam e são alimentados por sentidos que se apoiam em mentiras e em insuflar medo como meio de manutenção de apoios em grupos já vulneráveis.

As pesquisadoras saíram de campo com a impressão, a ser aprofundada pelas etapas seguintes do estudo, de que o paradoxo das posições políticas dos interlocutores venezuelanos está muito mais próximo de retratar um problema estrutural – que não passa apenas pelo esclarecimento acerca de mentiras – mas pela restituição de soluções duradouras de fato asseguradoras de direitos e promotoras da cidadania. O empreendedorismo, se for a solução perseguida, precisa ser reformatado pela atuação do Estado, por meio de políticas públicas econômicas e sociais que performem mais atos de cooperação do que atos de histórias de exceção.


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