O Congresso brasileiro e a ‘bukelização’ seletiva da segurança pública

Por Samira Bueno*


O medo do crime e da violência fez com que a segurança pública se tornasse a principal preocupação da população brasileira, segundo pesquisas recentes. Esse medo não é infundado. Um país que historicamente convive com elevados índices de homicídios e violência doméstica passou, na última década, a enfrentar um novo fenômeno: a disseminação nacional de organizações criminosas associadas ao narcotráfico, cuja origem está concentrada em São Paulo e no Rio de Janeiro. Soma-se a isso uma epidemia de roubos de celular, golpes virtuais e crimes patrimoniais cada vez mais organizados e violentos.

Essa expansão das facções transformou profundamente a dinâmica das cidades brasileiras. O que antes eram grupos locais e gangues desarticuladas deu lugar a organizações que se profissionalizaram no mundo do crime e passaram a atuar em parceria com o Comando Vermelho e o PCC — ou foram diretamente cooptadas por elas. O crime organizado deixou de ser um problema localizado para se tornar uma estrutura nacional, com impactos diretos sobre a vida cotidiana. 

Na Amazônia, cidades cortadas por rios e florestas tornaram-se estratégicas para o escoamento de drogas rumo à Europa. Em áreas urbanas, lideranças comunitárias têm sua voz anulada pela imposição violenta das facções. No Nordeste, não param de surgir relatos de famílias que financiaram seus imóveis por meio do Minha Casa Minha Vida e, em seguida, foram expulsas pelo domínio armado do tráfico. O controle territorial armado deixou de ser exceção para se tornar regra em muitos bairros periféricos do país.

É nesse contexto que o Congresso Nacional colocou a segurança pública no centro de sua agenda em 2025. A centralidade do tema é necessária. O problema é como ele vem sendo tratado. Em vez de respostas estruturais, baseadas em evidências e governança, parte significativa do Congresso — especialmente setores do centrão e da extrema direita — tem instrumentalizado o medo da população para impulsionar uma agenda de endurecimento penal, eficiente para mobilizar indignação e votos, mas ineficaz para reduzir a violência.

Dois projetos ilustram bem esse movimento: o chamado PL Antifacção e o substitutivo da PEC da Segurança Pública, ambos originados no Governo Federal, mas profundamente alterados no Congresso.

O PL Antifacção, em sua versão original, partia de um diagnóstico correto: o enfrentamento às facções exige inteligência financeira, investigação sofisticada, cooperação entre órgãos e modernização dos instrumentos investigatórios. No entanto, durante sua rápida tramitação na Câmara dos Deputados, o projeto foi desfigurado. Houve enfraquecimento da Polícia Federal, ampliação excessiva de tipos penais e endurecimento do regime prisional, desviando o foco daquilo que realmente fragiliza o crime organizado. O Senado conseguiu, em parte, corrigir esses excessos, mas o projeto retorna à Câmara sob risco de novos retrocessos.

Algo semelhante ocorre com a PEC da Segurança Pública. A proposta original do governo buscava constitucionalizar o Sistema Único de Segurança Pública (SUSP) para fortalecer a governança federativa e a coordenação entre União, estados e municípios. No entanto, o substitutivo aprovado na Câmara converteu essa lógica sistêmica em uma arquitetura centrada em forças-tarefa, operações excepcionais e endurecimento penal constitucionalizado.

O texto propõe a constitucionalização do Regime Disciplinar Diferenciado (RDD), a ampla restrição de benefícios penais, a criação de regimes excepcionais para integrantes de facções e até a possibilidade de redução da maioridade penal por plebiscito. Tudo isso é apresentado como resposta ao crime organizado, mas dialoga pouco com aquilo que, na prática, poderia enfraquecer as facções no médio e longo prazo.

Ao transformar medidas excepcionais em comandos constitucionais, o Congresso corre o risco de engessar a política criminal, reduzir a capacidade de correção futura e aprofundar uma lógica de encarceramento prolongado que, historicamente, alimenta as próprias facções que se pretende combater. Não é coincidência que o PCC e o Comando Vermelho tenham surgido dentro das prisões. Tampouco é irrelevante o fato de que suas principais lideranças estejam presas há décadas — sem que isso tenha impedido sua expansão territorial e econômica.

O paradoxo se torna ainda mais evidente quando se observa que, em meio a esse discurso de endurecimento penal, a Câmara dos Deputados aprovou, no apagar das luzes, o chamado PL da Dosimetria, que reduz o tempo exigido para progressão de pena em determinados crimes. A iniciativa foi desenhada para beneficiar os condenados pelos atos golpistas de 8 de janeiro de 2023 — inclusive o ex-presidente Jair Bolsonaro, agora presidiário —, mas seus efeitos alcançam também criminosos comuns.

O Brasil vive, assim, uma contradição escancarada. De um lado, congressistas inspirados no modelo Bukele de fazer segurança pública defendem encarcerar por mais tempo, com menos direitos e cada vez mais cedo aqueles que sempre foram os principais clientes do sistema de justiça criminal: jovens pretos, pobres e periféricos. De outro, os mesmos parlamentares se mobilizam para aliviar penas e facilitar a saída da cadeia de golpistas ligados às elites políticas.

A “bukelização” da segurança pública no Brasil é seletiva. Ela serve para endurecer o sistema penal contra os de sempre, enquanto se flexibiliza a lei para proteger aliados políticos. A novela continuará em 2026 – ano eleitoral e de Copa do Mundo –, mas uma coisa já está clara: para segmentos influentes do Congresso Nacional, encarcerar mais e por mais tempo é ótimo — desde que sejam os pretos, pobres e periféricos a lotar os pavilhões das unidades prisionais.


*Samira Bueno é diretora-executiva do Fórum Brasileiro de Segurança e coordenadora do mestrado profissional em gestão e políticas públicas do IDP


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