O que a política ambiental e climática brasileira pode aprender com os EUA sobre racismo ambiental?

Por Marina Marçal*


Em 2022, estive estudando na Columbia Law School. Eu era a única mulher negra no programa de meio ambiente e energia, num doutorado que tinha como objetivo determinar como as políticas públicas climáticas no Brasil podem ser mais inclusivas, considerando os conceitos de interseccionalidade (Dr. Kimberlé Crenshaw) e de racismo ambiental (Dr. Robert Bullard), ambos com origem estadunidense. E é a partir dessa reflexão que proponho este artigo.

O conceito de “racismo ambiental” foi cunhado pela primeira vez nos Estados Unidos, nos anos 1980, pelo pastor estadunidense Benjamin Chaves Jr, mas certamente o maior acervo científico do país a esse respeito se encontra nos estudos do Dr. Robert Bullard, conhecido popularmente no mundo como o “pai do racismo ambiental”.

Esse conceito basicamente aponta para a divisão desigual do bônus e do ônus do “desenvolvimento” no modelo de produção na sociedade capitalista em que as populações negras, indígenas, latinas e minorias sociais, costumam ser majoritariamente afetadas pela degradação ambiental, como as enchentes, poluição do ar, proximidade à destinação de resíduos sólidos e/ou tóxicos, entre outros.

O Dr. Bullard foi ouvido inicialmente como sociólogo e perito em demonstrar a frequência com que o crime de racismo ambiental ocorreu no estado americano do Texas. Essas constatações embasaram uma série de decisões judiciais nos EUA e espero que um dia o mesmo ocorra no Brasil. Por isso, como advogada, tenho estimulado tanto o intercâmbio entre Brasil e EUA nesse tema. O Brasil precisa reconhecer na formulação de suas políticas ambientais e climáticas a existência da injustiça ambiental e climática fruto do racismo.

Mais recentemente, a literatura passou a entender, inclusive, o racismo climático como uma complementação do racismo ambiental, ao demonstrar que o histórico do colonialismo e da escravidão faz com que essas populações estejam submetidas hoje aos maiores impactos das mudanças climáticas, como consequência da falta de políticas públicas para lidar com o racismo ambiental.

Especialistas da Organização das Nações Unidas destacaram que os afrodescendentes e os africanos serão alguns dos grupos mais afetados pelas mudanças climáticas. Para o Grupo de Trabalho da ONU sobre Pessoas Afrodescendentes, embora tenha havido avanços no combate ao racismo e à discriminação racial, os afrodescendentes estão frequentemente entre os grupos mais pobres e mais marginalizados nas sociedades, muitas vezes vivendo em comunidades desproporcionalmente afetadas por décadas de degradação ambiental, como a poluição do ar e os resíduos tóxicos.

A exploração dos recursos naturais do nosso planeta sempre esteve ligada à exploração das pessoas negras e/ou indígenas. A lógica da colonização era extrair recursos valiosos do nosso planeta pela força, sem dar atenção aos seus efeitos secundários. Assim, para o parlamentar inglês David Lammy, a crise climática é, de certa forma, “a conclusão natural do colonialismo”, ele explica que:

Precisamos reconhecer que o movimento climático não tem a ver apenas com a proteção do Planeta. Tem a ver principalmente com se importar com as pessoas que vivem nele. Globalmente e nacionalmente, nós devemos reconhecer os desequilíbrios e as desigualdades estruturais. Um plano de recuperação verde radical deve criar empregos para as pessoas que têm sido marginalizadas há séculos – empregos plantando árvores, climatizando prédios, trabalhando em tecnologias verdes. Não podemos lidar com a crise climática sem lidar com as desigualdades raciais. Não podemos resolver desigualdades raciais sem consertar o sistema econômico. O novo acordo que a economia precisa não é apenas verde; é verde e negro
— David Lammy

Com o presidente Lula à frente do novo governo brasileiro, estamos vendo a pauta de clima ter protagonismo contínuo. O Ministério do Meio Ambiente passou a se chamar Ministério do Meio Ambiente e Clima. Está sendo estabelecida uma governança climática transversal com a agenda de clima fazendo parte também dos Ministério da Fazenda; Minas e Energia; Ciência, Inovação e Tecnologia; Ministério das Relações Exteriores; Ministério das Cidades; Ministério dos Povos Originários, entre outros. No entanto, é importante que essa nova estrutura de governança climática não seja somente transversal, mas seja também inclusiva.

Importantes especialistas foram nomeados para integrar o Ministério do Meio Ambiente e Clima no Brasil, mas é importante que haja diversidade não somente na figura da Ministra Marina Silva ou na composição de pastas dedicadas às pautas sociais, como o Ministério da Igualdade Racial, Direitos Humanos e Povos Indígenas. Os quadros técnicos do Ministério do Meio Ambiente e Clima precisam também ser diversos para que possamos reduzir a emissão de gases de efeito estufa e lidar com o aquecimento global, criando políticas públicas que não acentuem as desigualdades existentes no cotidiano daqueles que mais sofrem com a mudança do clima, cuja cor e a raça são bem definidos.

O Brasil, que é o país com a maior população negra fora do continente africano e de maioria feminina, merece ter tomadores de decisão ambientais que reflitam esse perfilamento demográfico. Em seu último relatório sobre adaptação, o próprio IPCC sugere que os tomadores de decisões implementem esse propósito transformando os sistemas que perpetuam desigualdade e renegociando dinâmicas de poder desequilibradas. Entre as possíveis soluções, ele aponta, inclusive, para a necessidade de se garantir uma representação justa de gênero nas tomadas de decisão ambientais.

Foto mostra a autora do artigo, Marina Marçal (de roupa azul e casaco branco) em reunião do Brazil Climate Action HuB na COP27. A primeira pessoa à esquerda é Peggy Shepard. O único homem da foto é Robert Bullard. A quarta pessoa, da esquerda para a direita, é Beverly Wright. Os três são conselheiros de assuntos ambientais da Casa Branca. A terceira pessoa da esquerda para a direita é a indígena brasileira Narubia Werreria. No centro, a ministra Marina Silva.

É importante reconhecer também a interseccionalidade, porque já possuímos dados científicos que demonstram como os extremos meteorológicos têm efeitos especialmente danosos para as mulheres, agravando a realidade em que vivem. Quando o Acordo de Paris foi assinado, os líderes mundiais reconheceram a necessidade de uma abordagem adaptável ao gênero nos ajustes às mudanças climáticas.

Outro relatório do IPCC, de 2022, demonstrou que, em todo o mundo, as mulheres priorizam a mudança climática na forma como trabalham, se envolvem em suas comunidade. De acordo com Minal Pathak, uma das diretoras científicas do IPCC, intensificando-se o acesso e a participação política das mulheres, a ação climática ganha força, já que “nos países onde as mulheres têm uma voz mais forte – uma voz mais política – elas impulsionam a ação climática mais rapidamente”.

Hoje, no entanto, os quadros técnicos e de diretoria do Ministério do Meio Ambiente e Clima no Brasil estão sendo compostos quase que exclusivamente por pessoas brancas, exceto pela ministra, e com mais 90% de homens. Basta acompanhar as nomeações no Diário Oficial. Podemos lidar com o racismo ambiental se praticamos a falta de representatividade institucional?

Bullard entende que o racismo ambiental se refere também a políticas, práticas ou diretrizes ambientais que afetam diferentemente ou de forma desvantajosa – seja intencionalmente ou não – indivíduos, grupos ou comunidades com base na cor ou raça, podendo ser reforçadas por instituições governamentais, jurídicas, econômicas, políticas e militares. Enquanto isso, os prejuízos estruturais e sistêmicos não são previstos e nem ao menos reparados na mesma proporção. Isto, por que, em sociedades economicamente desiguais, instituições e mecanismos jurídico-políticos podem servir tanto como instrumentos democráticos para a solução de conflitos como ferramentas legitimadoras de perpetuação de desigualdades.

Assim como Bullard é hoje membro do conselho consultivo de meio ambiente da Casa Branca, nos Estados Unidos, como outros ativistas ambientais negros estadunidenses, espero que o governo Lula, em seus próximos 4 anos, possa elaborar a lista de representantes e conselheiros do Ministério de Meio Ambiente e Clima de forma inclusiva e não somente discursiva. É importante a criação de estruturas que possam lidar com as vulnerabilidades pelas quais a população negra passa no Brasil, a partir das experiências daqueles e aquelas que já estão de fato lidando com a gravidade do aquecimento global no país.


Marina Marçal é especialista em Política Climática, Ciências Jurídicas e Sociais, Gênero e Relações Étnico-Raciais. Coordenou o Portfólio de Política Climática do Instituto Clima e Sociedade (iCS). Foi visiting scholar no programa de Meio Ambiente e Energia de Columbia Law School (Spring 2022) sob a orientação do professor doutor Jedediah Purdy com foco em Política Climática e Equidade. É ecofeminista negra e advogada, doutoranda e mestra em Sociologia e Direito na linha de pesquisa de Conflitos Socioambientais, Rurais e Urbanos pela Universidade Federal Fluminense (UFF-RJ), onde se graduou. Também é mestra em Relações Étnico-Raciais pelo Centro Federal de Educação Tecnológica Celso Suckow da Fonseca (CEFET-RJ). Tem experiência em pesquisas acadêmicas ambientais há mais de 11 anos pela PROEX-UFF, FAPERJ e FIOCRUZ (incluindo o Mapa de Conflitos de Injustiça Ambiental no Brasil) e trabalho de campo envolvendo povos indígenas, comunidades quilombolas e populações no entorno de atividade mineral em Minas Gerais e no Pará, além de trabalhadores rurais no nordeste. Foi citada em 2018 na lista de especialistas negros do The Intercept Brasil. Além de escritórios de advocacia, atuou com Política e Incidência na área de Setor Privado, Direitos Humanos e Desigualdades na Oxfam Brasil. No ICS, Marina atuou em projetos como Plataforma Subnacional para o Clima, Brazil Climate Action HUB, ACA Brasil trabalhando com a implementação multisetorial da NDC brasileira, incluindo articulação com atores subnacionais e Congresso Nacional, além da mobilização brasileira para as COPs (Conferência do Clima). Também é membro do Women Leaders in Planetary Health, do Climate Reality Project, da Concertação para a Amazônia e do Columbia Women Leadership Network Program.

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