A verdadeira justiça tributária exige a contrapartida da elite econômica, que é branca e masculina
Por Viviana Santiago*
Em 2025 o Brasil assistiu a debates sobre justiça tributária, que incluíram a reforma da renda e a aprovação – pela Câmara dos Deputados e pelo Senado – de um Projeto de Lei (PL 1.087/2025), que, para reduzir as desigualdades no país, passou a isentar do pagamento de Imposto de Renda de Pessoa Física (IRPF) os cidadãos que recebem até R$ 5 mil. Além disso, esse mesmo PL diminuiu a incidência de Imposto de Renda para aqueles que recebem até R$ 7 mil mensais. Por fim, foi adotada como medida de compensação para a renúncia fiscal alíquota mínima de tributação de até 10%, o que beneficiou cerca de 141 mil brasileiros (0,13% da população) – percentual que corresponde àqueles brasileiros que têm renda acima de R$ 50 mil por mês. O impacto estimado da implementação dessas medidas dá pistas do tamanho da desigualdade do sistema, já que essa tributação mínima pode aliviar a renda de outros 10 milhões de pessoas.
O PL 1.087 corrige uma distorção histórica, que faz com que o peso da tributação permaneça sobre a base e o meio da pirâmide econômica e social brasileira, enquanto os super-ricos acumulam renda. A medida, além de um alívio fiscal, é um marco na luta por um sistema tributário mais justo e é um passo concreto rumo à promoção da justiça social e ao fortalecimento da democracia, porque aumenta a renda disponível das famílias mais pobres – majoritariamente chefiadas por mulheres negras –, e estimula a economia, atuando tanto no combate à desigualdade quanto na construção de um modelo econômico mais justo e inclusivo.
No entanto, essa vitória é insuficiente. A verdadeira justiça tributária exige que se avance também no outro lado da equação. A manutenção de privilégios seculares, como a isenção de lucros e dividendos, demonstra que a contrapartida da elite econômica, predominantemente branca e masculina, ainda não foi equacionada.
No Brasil os lucros e dividendos não são tributados, o que diverge da maioria dos países, já que, no âmbito da Organização para a Cooperação e Desenvolvimento Econômico (OCDE), 24 dos 38 membros ampliaram a alíquota máxima cobrada sobre lucros e dividendos distribuídos nas últimas duas décadas, de acordo com o pesquisador Sérgio Gobetti, do Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada (Ipea). Dos poucos que, a exemplo do Brasil, isentavam dividendos, apenas Estônia e Letônia mantêm essa prática. Segundo Gobetti, 47% do quase R$ 1 trilhão de lucros e dividendos distribuídos em 2023 foram apropriados por cerca de 160 mil pessoas (0,1% do país).
É fundamental lembrar também a exclusão de grandes produtores rurais da tributação mínima, o que perpetua um modelo de privilégios e causa impactos socioambientais graves. Assim, a aprovação do PL 1.087 não substitui a necessidade urgente de uma reforma estrutural e antirracista, que inclua a tributação de grandes fortunas, como já previsto na Constituição, e a inclusão de marcadores raciais nas declarações de Imposto de Renda para embasar políticas públicas verdadeiramente reparadoras.
No documento “A raiz da desigualdade está no topo – os impactos distributivos de classe, raça e gênero na nova reforma tributária da renda”, publicado em novembro de 2025, a Oxfam Brasil reflete, a partir de uma abordagem feminista e antirracista, sobre a implementação do PL 1.087. E faz as seguintes recomendações para avanços mais profundos na justiça tributária: implantação da progressividade do sistema tributário via expansão de faixas de tributação e atualização das alíquotas do Imposto de Renda sobre Pessoa Física para torná-lo verdadeiramente progressivo; avaliações periódicas do Imposto de Renda considerando recorte de gênero e raça e inclusão de campo de autodeclaração racial na declaração anual do imposto para fortalecer a qualidade da produção de dados; revogação da isenção do Imposto de Renda sobre distribuição de lucros e dividendos, acabando com a assimetria de tratamento concedido entre as rendas do capital e do salário; regulamentação da aplicação do imposto sobre grandes fortunas (conforme o artigo 153, VII da Constituição); revisão e atualização da política de benefícios fiscais para distribuição mais equitativa dos encargos tributários, com implementação de sistema de transparência dos benefícios tributários concedidos, à semelhança do “Portal da Transparência”, do Governo Federal.
Os avanços que agora vivenciamos ainda são tímidos diante das proporções da desigualdade tributária no Brasil, o que requer participação atenta e qualificada da sociedade para garantir que as propostas não sucumbam por força dos interesses econômicos e corporativos que reproduzem privilégios históricos. Para mudanças mais profundas é imprescindível que as organizações e os movimentos sociais sigam em mobilização e em luta, a fim de que o Congresso avance mais neste campo e garanta que o sistema deixe de penalizar quem mais precisa.
*Viviana Santiago é diretora-executiva da Oxfam Brasil