O significado histórico da condenação de Bolsonaro
Por Paulo Abrão*
O Supremo Tribunal Federal brasileiro proferiu no dia 25 de novembro a condenação definitiva do ex-presidente Jair Bolsonaro a 27 anos e 3 meses de prisão. Ele foi considerado culpado pela participação na tentativa frustrada de golpe de Estado que pretendia impedir que o atual presidente, Luiz Inácio Lula da Silva, vencesse as eleições de 2022, tomasse posse e exercesse seu terceiro mandato legítimo. Além de Bolsonaro, foram condenados no mesmo processo ex-ministros de seu gabinete e comandantes militares de alta patente envolvidos na mesma trama golpista.
A condenação levou em conta uma estratégia que incluía a contestação infundada das urnas eletrônicas usadas nas eleições brasileiras e de todo o sistema eleitoral; a confabulação de um plano para matar autoridades; e a invasão e depredação da Praça dos Três Poderes, onde estão as sedes do Executivo, Legislativo e Judiciário, em Brasília. Além disso, outros elementos, como o uso da Abin (Agência Brasileira de Inteligência) para monitorar adversários políticos e a criação de uma força-tarefa da Polícia Federal para dificultar o acesso de eleitores às urnas, em redutos nos quais Lula tinha votação expressiva, no Nordeste, compuseram o cenário com o qual Bolsonaro e seus apoiadores pretendiam dar o golpe.
Quando a sentença finalmente foi proferida, o ex-presidente já estava em prisão preventiva, decretada por causa do risco de fuga e de outras violações de medidas ditadas pela Justiça no curso do processo. Ele foi mantido, primeiro, em prisão domiciliar, em Brasília. Em seguida, foi transferido para a sede da Polícia Federal, também na capital, depois que confessou ter usado um aparelho de solda para tentar romper a tornozeleira eletrônica. Por sua condição vulnerável de saúde, decorrente de um atentado a faca sofrido na campanha eleitoral de 2018, Bolsonaro terá acesso desimpedido e permanente a seus médicos pessoais e não será enviado a uma unidade prisional comum – a exemplo do que aconteceu com Lula, quando também foi mantido em uma unidade da Polícia Federal, em Brasília. Já os comandantes militares envolvidos na trama golpista cumprirão pena em quartéis.
As punições individuais foram impostas pela Justiça no fim de um processo legal que cumpriu com todas as formalidades requeridas e respeitou todas as garantias judiciais devidas. Essas condenações são importantes, primeiro, porque cumprem a função de responsabilizar cada um dos envolvidos, nominalmente, individualmente. Mas o significado dessas sentenças vai muito além da mera responsabilização individual: ela coloca a democracia brasileira em um novo patamar – mais alto, mais forte e estável – em comparação com um passado marcado até aqui pela absoluta impunidade dos envolvidos no golpe de Estado de 1964 e nos 21 anos de ditadura militar que vigorou no Brasil até 1985. Nesse sentido, a prisão de Bolsonaro e de seus comparsas na trama golpista é uma virada de página.
O longo caminho que levou a essas sentenças foi marcado por testes difíceis para as instituições brasileiras. Primeiro, porque os próprios protagonistas da trama golpista contavam e ainda contam com apoio de uma parcela expressiva da sociedade brasileira: pesquisa Datafolha de abril mostrava que 42% da população consideravam que Bolsonaro não deveria ser preso. E, em agosto, outra pesquisa, do mesmo instituto, mostrava que 33% dos eleitores voltariam em Bolsonaro apesar de tudo – embora essa última pergunta tenha efeito nulo, dado que o ex-presidente está inelegível. O que esses números demonstram é o quanto o Brasil ainda está distante de solidificar os valores democráticos em uma sociedade que conviveu por tantos anos com a impunidade. Nesse sentido, a prisão de Bolsonaro e de todo o núcleo golpista traz consigo um caráter didático, que pode mudar a percepção dessa parcela dos brasileiros que ainda teimam em tergiversar sobre os valores democráticos.
Mas se, por um lado, essa pressão interna da extrema direita criou dificuldades ao longo do processo – com acusações infundadas de que o Judiciário estaria se excedendo e protagonizando uma perseguição política dirigida –, foi no campo internacional que o Brasil passou por um de seus mais duros testes, a partir do momento em que os EUA passaram a agir de maneira abertamente hostil para intimidar os juízes do caso. Provocados pelo lobby feito por um dos filhos do ex-presidente, o deputado federal Eduardo Bolsonaro, e por outros ativistas de extrema direita que vivem nos EUA, foragidos da Justiça, o governo americano aplicou a Lei Magnitsky contra ministro do Supremo e apelou para pesadas taxações alfandegárias sobre produtos brasileiros, numa tentativa de livrar os golpistas da prisão.
A pressão não surtiu efeito. Graças à competência do serviço diplomático brasileiro e à habilidade pessoal do presidente Lula, o Brasil logrou reverter grande parte dessas medidas e arrefecer a hostilidade americana. Os empresários também exerceram pressão. Além disso, a sociedade civil organizada se fez ouvir, por meio de uma comitiva organizada pelo WBO, que foi a Washington e a Nova York nos meses de setembro e outubro para dar a conhecer detalhes do processo e da dinâmica em curso no Brasil.
Os que ameaçam a democracia brasileira sofreram um duro golpe com essas condenações, mas o risco permanece e a vigilância é necessária, pois novas lideranças políticas do campo da extrema direita já se articulam em torno de uma proposta de anistia com a qual pretendem replicar nos dias de hoje a impunidade que marcou a história recente do Brasil. Além disso, a eleição presidencial do ano que vem deve mobilizar não apenas o extremismo conservador nacional, mas também poderosas forças internacionais interessadas em desestabilizar o Brasil e fazer de nosso país um laboratório dos que trabalham para minar por dentro a democracia em várias partes do mundo.
*Paulo Abrão é doutor em direito, ex-secretário Nacional de Justiça (2011-14), ex-secretário-executivo da Comissão Interamericana de Direitos Humanos (2016-20) e diretor-executivo do WBO (Washington Brazil Office).