As relações entre Brasil e EUA, de alianças pragmáticas a alinhamentos programáticos


Pedro Abramovay, advogado, doutor em ciência política pelo IESP-UERJ e vice-presidente da Open Society Foundations. Este artigo foi escrito por ele para a edição 115 do boletim semanal do WBO, publicado em 3 de maio de 2024. Para assinar o boletim e receber gratuitamente, insira seu email no campo abaixo.


Se alguém transcrever os debates entre Lula e Bolsonaro e entre Biden e Trump, traduzi-los para a mesma língua, e apagar a autoria das frases, será difícil, em muitos momentos, distinguir quando é Lula ou Biden e quando é Trump ou Bolsonaro que estão falando.

A defesa das armas como solução para enfrentar o crime, taxar os super-ricos, o compromisso com a questão climática, o ataque ao processo eleitoral, a necessidade de uma política industrial verde, o negacionismo climático, o ataque às vacinas e medidas de lockdown na pandemia. Essas questões aparecem nos debates tanto no Brasil quanto nos EUA. E sabemos exatamente quem defende cada um desses pontos nos dois casos.

Claro que talvez salte aos olhos, em primeiro lugar, uma questão de estilo. Comentários absolutamente chocantes, que pretendem exalar uma sinceridade que os diferencia do pântano da política (mesmo emergindo justamente de lá), fazem parte do estilo tanto de Trump quanto de Bolsonaro. O ataque às mulheres (seguem aqui duas lista de declarações ofensivas às mulheres feitas por Bolsonaro e Trump) como forma de reforçar, por meio da masculinidade tóxica, a imagem de homem forte que ambos cultivam também.

Por parte de Biden e Lula, o estilo também pode os aproximar. Políticos mais velhos, experientes, que procuram colocar em linguagem simples os temas que importam às pessoas. A proximidade com os trabalhadores, e esse esforço de após anos tentando representar uma mudança na política, terem que jogar o papel de guardiões da estabilidade e da normalidade. 

A proximidade de estilos entre presidentes do Brasil e dos EUA pode não ser novidade. Mesmo que Bill Clinton tenha assumido logo depois de Fernando Collor, são famosas as fotos tanto de um quanto outro fazendo cooper de camiseta. E os discursos inspiradores de Obama e Lula reconectaram, em momentos próximos, seus cidadãos com a política.

Mas é natural que presidentes possam representar o espírito do tempo. Assim, não há nada de muito espantoso que estilos ou formas de comunicação sejam parecidos nos EUA ou no Brasil.

O que impressiona no momento atual – e que defenderei aqui, é algo absolutamente único na história contemporânea de Brasil e EUA – é o enorme alinhamento programático entre democratas e a centro-esquerda brasileira e Republicanos e a extrema-direta bolsonarista.

Presidentes Lula e Biden durante anúncio de medidas conjuntas sobre as novas formas de trabalho do século 21, em Nova York

A relação entre Brasil e Estados Unidos sempre foi amplamente marcada pelo pragmatismo. O que defendo, neste artigo, é que estamos saindo da possibilidade de alianças pragmáticas para alianças programáticas. E isso pode ter consequências profundas – com riscos e oportunidades- para a relação dos países.

O pragmatismo, natural, na relação entre EUA e Brasil, nunca foi espelhado em um verdadeiro alinhamento do cenário político dos dois países. Ou seja, essa ideia de que os dois polos da política americana fossem tão similares aos dois polos da política brasileira, como vemos hoje, não ocorreu em momentos anteriores dessa relação. Ao menos, desde o século passado.

Quando Getúlio, após alguns anos de hesitação, se alinha claramente com os EUA de Roosevelt (a célebre foto dos dois líderes em Natal em 1943 marca esse momento) apesar de algumas semelhanças entre o New Deal e desenvolvimentismo varguista, a aliança que aparecia ali era claramente pragmática, vinculada à Guerra e o que os EUA poderiam oferecer ao Brasil para se juntar ao aliados. Nem Vargas ou Roosevelt queriam governar seus países da mesma forma e, muito menos, as oposições a cada um deles tinham qualquer semelhança entre si.

O pragmatismo da relação, sem qualquer paralelismo programático entre os polos da política, certamente se arrasta aos paralelos com Truman, Eisenhower e Dutra, Getúlio e Juscelino Kubitscheck. Aliás, os grandes americanófilos do período no Brasil eram os quase sempre opositores da UDN.

A divergência programática talvez atinja o seu pico ao longo dos anos 1960, mesmo com pressões e agitações similares vindas da sociedade civil. O que era bom para os EUA (democracia, ampliação dos direitos civis e a “guerra contra a pobreza”) claramente não se refletia na política dos EUA para o Brasil. E é sob a presidência democrata (que levava adiante as pautas citadas) que os EUA, hoje sabemos, apoiam de maneira decisiva o Golpe Militar em 1964 que derruba o presidente João Goulart, certamente mais afinado com esses sentimentos do que os golpistas que o retiraram do poder com apoio americano.

Durante todo o período da ditadura militar, a aliança pragmática segue e aí, mais claramente do que nunca sem qualquer interesse de alinhamento programático. Muito pouco do que os generais queriam para o Brasil poderia ser pensado como um programa de governo nos EUA.

Mesmo com a abertura, a partir de 1985, ocorrida no auge da política neoliberal de Reagan, a divergência programática entre o debate nos EUA e no Brasil era enorme. E se passa a haver algum alinhamento entre a direita norte-americana e a direita brasileira, no período em que Collor e George H. W. Bush governavam, certamente não havia qualquer semelhança entre a oposição de Collor, claramente anti-neoliberal e os democratas. Essa divergência fica justamente mais clara quando Clinton e Fernando Henrique compartilham as presidências no momento, sim, de maior aproximação programática entre os dois governos. Mas estamos falando do polo direito da política brasileira (FHC com sua coalizão conservadora), se tocando ao polo esquerda da política norte-americana (democratas).

Lula e Bush constroem excelente aliança pragmática, mas com evidentes diferenças programáticas. E Obama, se por um lado acena para temas comuns a um certo progressismo global, também compartilhado pela esquerda brasileira, por outro implementa uma agenda econômica bastante conservadora. O professor de história norte-americana em Oxford Gary Gerstler, autor do livro “Ascenção e Queda da Ordem Neoliberal”, classifica o presidente Obama como o último presidente neoliberal. De fato, a presença forte de um economista ortodoxo como Larry Summers na administração Obama, mostra o abismo com o que eram os governos petistas naquele momento.

Mas a emergência de Trump marca, como sabemos, um terremoto na política não apenas dos EUA, mas global. E se ao longo dos anos 1990 e 2000, a grande dificuldade na política americana era a de se compreender a real diferença entre republicanos ou democratas, a partir de 2016, essa diferença ficou mais clara do que nunca. E, dois anos depois do terremoto nos EUA, o tsunami chegou ao Brasil. Em 2018, as mesmas ideias, a mesma forma vistas em Trump apareciam em Bolsonaro.

Trump recebe Bolsonaro no Salão Oval da Casa Branca em 2019

E, se Hillary e Haddad talvez não parecessem tão alinhados, o Lula que aparece em 2022 traz pautas muito similares às de Biden. A verdade é que o discurso de Biden representa uma inflexão à esquerda no partido democrata. Seja pela incorporação mais clara de pautas de movimentos cruciais para a derrota de Trump como o movimento de mulheres e o movimento negro nos EUA, seja por uma mudança clara no discurso sobre o papel do Estado na economia, Biden se distancia muito da visão neoliberal sobre políticas públicas. A necessidade de intervenção estatal na resposta à pandemia, o tamanho das ambições para a transição energética justa e, claro, a competição chinesa, mudam radicalmente o debate sobre a possibilidade de políticas industriais e uma reconformação sobre o papel do Estado.

Ao mesmo tempo, o Lula de 2022 traz um discurso climático muito mais ambicioso do que o apresentado nos mandatos anteriores e passa a incorporar também com mais frequência os temas ligados a gênero, raça e diversidade. A imagem da posse de Lula, com a subida da rampa com representantes de diversas minorias brasileiras, representa bem esse momento.

Além disso, tanto Lula quanto Biden, vivenciaram tentativas de golpe de Estado por seus opositores, com invasões violentas a sedes de Poderes. O julgamento das pessoas envolvidas nesses crimes segue polarizando a política nos dois países. O ambiente de desinformação incentivado por Trump e Bolsonaro serve ao negacionismo científico (tanto em temas de clima quanto de saúde pública), criando teorias de conspiração, muita vezes apoiadas no fanatismo religioso, que atacam a democracia tanto nos EUA quanto no Brasil.

Ou seja, o momento não é de alinhamento pragmático entre Brasil e EUA, como vimos acontecer ao longo do último século. O alinhamento é, como nunca, programático. Trumpistas e bolsonaristas, democratas e lulistas, têm entre si agendas internas com semelhanças nunca vistas na história das relações entre os países.

Mas o que exatamente isso significa? Como dito anteriormente, há riscos e oportunidades que surgem aqui. As oportunidades são claras. A possibilidade de cooperação concreta em áreas que interessam aos dois países, tanto na proteção à democracia e combate à desinformação, quanto em temas de gênero ou raça são bastante óbvias. Mas, de forma ainda mais profunda, é na área climática que se pode pensar uma aliança estratégica entre os países. Não apenas em apoio à redução do desmatamento, mas na compreensão de que é necessário investimento público para construir alternativas econômicas à economia predatória na Amazônia. Os EUA historicamente, principalmente desde Reagan, tiveram papel ativo para barrar iniciativas de política industrial no Brasil. Uma aliança programática pode dar um cavalo de pau nessa história e construir a possibilidade de uma política industrial verde com apoio dos EUA. Do ponto de vista geopolítico, nada melhor para os EUA considerando os objetivos de fazer frente ao avanço chinês na região.

Mas nem tudo são flores nas semelhanças programáticas. A retomada da defesa de políticas industriais nos EUA representa, de alguma forma, uma volta ao protecionismo. E se isso é saudado pelo mundo sindical norte-americano, sabemos que pode ter consequências complicadas para a indústria brasileira. Uma aliança programática terá que saber lidar com questões com essas.

Barack Obama recebe Dilma Rousseff na Casa Branca, em 2015

Claro que o risco maior deste alinhamento dos dois polos no Brasil e nos EUA se dá na possibilidade de coabitação entre direita em um país e esquerda em outro. Assim, como foi importante o papel do governo Biden – ainda que estremecendo a relação com o Brasil de Bolsonaro – para deixar claro que os EUA não aceitariam um golpe no Brasil, uma vitória de Trump, pode colocar o alinhamento ideológico à frente de eventuais interesses pragmáticos e fazer com que a extrema direita americana imponha sérias dificuldades ao governo brasileiro.

Também é necessário mencionar o risco para a democracia nos dois países em um eventual cenário de volta dupla da extrema direita. As possibilidades de cooperação para a perseguição de adversários e desgaste das instituições certamente estarão na pauta.

Finalmente, é importante que se diga que o alinhamento programático se dá nas políticas internas e não na política externa (que é comumente onde países se encontram). As posições do governo Lula sobre Israel, Rússia, China ou Irã, estão bastante distantes das posições dos EUA. Coordenação e aproximação são possíveis e estamos vendo isso acontecer na cooperação dos países para a implementação do acordo de Barbados sobre as eleições venezuelanas. Mas há um risco considerável de que a falta de alinhamento na política externa possa impedir uma cooperação dos países nas agendas internas.

O alinhamento programático é uma novidade na relação entre EUA e Brasil. Essa novidade abre possibilidades de mudanças estruturais na condução da relação dos países. Essas mudanças, entretanto, não significam nem um abandono das condições pragmáticas que continuaram a informar essa relação, mas exigem novas abordagens para que os dois países possam aproveitar ao máximo deste novo momento.

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