Entre o legado democrático do STF e os riscos para o espaço cívico 

Por Bruno Brandão*


Nos últimos anos, o Supremo Tribunal Federal (STF) teve papel decisivo na defesa das instituições democráticas contra ameaças e ataques do governo Bolsonaro. A Corte também impediu a concretização de diversas políticas nocivas daquele governo e do Congresso aos direitos de minorias, à saúde pública e ao meio ambiente, e avançou na responsabilização do ex-presidente Jair Bolsonaro e de seu grupo conspirador pela tentativa de golpe. Esta semana, ao julgar integrantes do chamado “núcleo das fake news”, reafirmou que a desinformação não pode capturar o debate público nem intimidar instituições. 

Esse histórico torna ainda mais preocupante a conduta reiterada do ministro Gilmar Mendes, que, desde 2019, vem atacando a Transparência Internacional (TI), seu capítulo brasileiro e sua equipe, promovendo desinformação sobre o trabalho da organização.  

Em 15 de outubro, na leitura de um voto transmitido ao vivo, o ministro voltou a repetir a narrativa falsa de que a TI receberia ou faria a gestão de recursos provenientes de acordos de leniência — alegação já exaustivamente desmentida por diversas autoridades, incluindo o Ministério Público Federal, a Procuradoria-Geral da República e, recentemente, o Tribunal de Contas da União

A origem dessa fake news remonta a novembro de 2019, quando o ministro usou a leitura de um voto para lançar acusações infundadas contra a TI, poucos dias após a publicação de um relatório crítico sobre retrocessos no arcabouço anticorrupção, apresentado à OCDE. Esse relatório mencionava a auditoria da Receita Federal que incluía as esposas dos ministros Dias Toffoli e Gilmar — auditoria que foi suspensa e nunca retomada. Em 2020, a narrativa ganhou força com um ofício interno da Procuradoria-Geral da República, assinado pelo então procurador-geral Augusto Aras,  insinuando que a TI poderia gerir recursos da leniência do grupo empresarial J&F, algo factual e legalmente impossível, pois os Memorandos de Entendimento com o MPF (2014 e 2017) vedavam expressamente qualquer repasse, não previam qualquer papel de gestão de recursos e haviam expirado em 2019. O documento foi vazado, alimentou manchetes e foi desmentido pela Subprocuradora-Geral Samantha Dobrowolski, mas continuou sendo reciclado em procedimentos e discursos. 

É importante registrar como as distorções sobre a relação da TI com a Operação Lava Jato também serviram — e servem até hoje — de matriz para ataques à organização. Evidentemente, a Lava Jato teve papel extremamente relevante para o movimento global da TI, ao desvendar esquemas transnacionais de macro corrupção que impactaram gravemente países institucional e socialmente ainda mais frágeis que o Brasil, na África e na América Latina, onde mantemos capítulos atuantes em praticamente todos eles. O uso de mensagens de membros da TI na chamada “Vaza Jato” foi providencial para a fabricação de todo tipo de narrativa orientada à deslegitimação absoluta de qualquer ator no entorno da operação. Trechos foram selecionados e descontextualizados para sustentar versões enviesadas, ao mesmo tempo em que foram omitidas mensagens e declarações públicas que evidenciavam discordâncias, críticas e alertas da TI em relação à própria operação.  

Pagamos caro tanto quando apoiamos medidas que considerávamos virtuosas quanto quando criticamos excessos e a aproximação de expoentes da Lava Jato ao bolsonarismo, que sequestrou o discurso anticorrupção. Pagamos ainda mais caro quando denunciamos a conduta de algumas das mais influentes autoridades do Poder Judiciário e de grandes grupos empresariais. Essa é a realidade que comprova nossa independência: somos atacados pela esquerda, pela direita e, sobretudo, pelo topo. 

Há mais de cinco anos, a TI Brasil enfrenta assédio judicial em diferentes instâncias. O caso mais grave é a investigação criminal aberta no STF, em fevereiro de 2024, que permanece ativa mesmo após pedidos reiterados da PGR pelo seu arquivamento por total falta de provas e pela ausência de competência da Corte.  

Essa situação foi mencionada no Terceiro Relatório Regional da Comissão Interamericana de Direitos Humanos sobre Defensores de Direitos Humanos nas Américas, que alerta para práticas de criminalização da sociedade civil e cita expressamente o caso da TI Brasil. O fato de o tribunal constitucional do país ser citado em um documento que monitora riscos à democracia e à liberdade de atuação de defensores em todo o continente é um sinal de alarme que não pode ser negligenciado. 

A contradição é evidente: a mesma Corte que se destacou na defesa das instituições democráticas convive com discursos e procedimentos que fragilizam o espaço cívico e normalizam desinformação contra quem combate a corrupção. Isso projeta custos institucionais e reputacionais para o país e desincentiva a colaboração cívica essencial ao controle do poder. O contexto político ajuda a explicar a permeabilidade dessas narrativas. A polarização e o sequestro do discurso anticorrupção pelo bolsonarismo — apoiado por expoentes da Lava Jato — afastaram setores progressistas dessa pauta. Esse cenário permitiu que versões manipuladas fossem acolhidas até mesmo entre pares na sociedade civil, arrefecendo reações solidárias diante de ataques evidentes à liberdade de expressão e de associação.  

Nada disso diminui a confiança da TI na maioria ética do Judiciário nem o respeito institucional devido ao STF. Mas é urgente restabelecer os fatos: a TI jamais recebeu ou geriu recursos de leniências; seus acordos com o MPF proibiam qualquer repasse, não previam qualquer papel de gestão de recursos e caducaram em 2019; e as autoridades competentes já desmentiram essa fake news em diversas ocasiões. Também é imprescindível que os pedidos da PGR sejam apreciados e que cesse o uso de instâncias judiciais para prolongar suspeições infundadas contra organizações da sociedade civil. Proteger o espaço cívico é condição para que o Brasil preserve credibilidade democrática, garanta segurança para quem atua no interesse público e reconstrua a agenda anticorrupção como política de Estado, livre de instrumentalização política e de narrativas autoritárias. 


 *Bruno Brandão é diretor executivo da Transparência Internacional – Brasil e membro do Board of Directors da Transparency International


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