Impasse sindical brasileiro

Marcio Pochmann é pesquisador no Cesit (Centro de Estudos Sindicais e de Economia do Trabalho) e professor titular no Instituto de Economia da Universidade Estadual de Campinas. Este artigo foi escrito por ele para a edição nº 64 do boletim semanal do WBO (Washington Brazil Office), distribuído em 28 de abril de 2023. Para assinar o boletim insira seu email no formulário que está no rodapé deste artigo.


As bases estruturais pelas quais o sindicalismo brasileiro emergiu se encontram vinculadas ao esforço de transitar do longevo e primitivo agrarismo para a moderna sociedade urbana e industrial desde a segunda metade do século 19. Do lançamento do Manifesto Republicano, em 1870, à Revolução de 1930, foram sendo criadas as condições objetivas pelas quais o Brasil foi, junto com a Coreia do Sul, o país de passado colonial e periférico que entre as décadas de 1930 e 1980 levou mais avante, ainda que tardiamente, a industrialização nacional.

Mas com o ingresso passivo e subordinado na globalização neoliberal a partir de 1990, o que havia até então de sociedade urbana e industrial constituída sofreu forte impacto regressivo, acompanhado, por consequência, do esfarelamento das bases materiais pelas quais o sindicalismo se estruturou ao longo do século 20. Com a desindustrialização houve a reversão do ciclo econômico expansionista do passado, fazendo com que o País permanecesse aprisionado à longa fase de estagnação assentada na financeirização do estoque de riqueza velha e na volta do modelo primário exportador.

Com isso, a geração de crescente população sobrante somada aos requisitos das atividades tipicamente capitalistas condicionou o congelamento do assalariamento e o rebaixamento do emprego protegido por direitos sociais e trabalhistas. Também ganhou expressão a reconfiguração das atividades associadas à economia popular e de subsistência conformada por pequenos negócios e empreendedores de serviços gerais, incapazes de gerar identidade laboral e pertencimento coletivo laboral.

Por conta disso, o primeiro quarto do século 21 tem se caracterizado pelo impasse sindical brasileiro. De um lado pela defesa de políticas públicas de natureza reparatória, comprometida com a recomposição dos direitos sociais e trabalhistas destituídos pelo receituário neoliberal e fortalecimento do sindicalismo próprio da sociedade industrial.

As possibilidades ocupacionais no Brasil se limitam à difusão da precariedade cada vez mais distante da relação capital-trabalho
— Marcio Pochmann

Ainda que justificáveis e necessárias, as propostas de caráter reparatórias parecem insuficientes, especialmente se forem consideradas as condições estruturais e objetivas do passado, já não mais existentes. A reparação no trabalho trata do presente do passado, o que é importante, sobretudo quando o período de tempo não está submetido às alterações estruturais. Do contrário, como parece ocorrer atualmente pelo curso de uma mudança de época, o estratégico se volta muito mais à situação do presente do futuro, fruto de uma nova época histórica em constituição.

De outro lado, as exigências correspondentes à transição da Era Industrial para a Digital. As políticas de reparação tendem a vislumbrar o horizonte de expectativas associadas à ideia da prevalência de uma mesma época histórica (Era Industrial), enquanto a realidade atual aponta para a mudança estrutural (Era Digital).

Nesse contexto que se consolida o quotidiano laboral conectado a demandas próprias da inédita concepção do trabalho que emerge da Era Digital. Deixa de fazer sentido, por exemplo, a separação entre trabalho produtivo e reprodutivo, trabalho dentro e fora da casa, entre outros, uma vez que a digitalização invadiu e contaminou as fronteiras que até então se justificavam durante a Era Industrial.

As ocupações disponíveis se deslocam do eixo temporal que conecta ao horizonte futuro melhor para o que resulta da forma pela qual o Brasil tem se reposicionando na nova Divisão Internacional do Trabalho. Sob a Era Digital, a Divisão Internacional do Trabalho separa dois grupos distintos de países, os que produzem e exportam bens e serviços digitais e aqueles que os consumem a partir da importação, pois praticamente quase nada produzem internamente.

O Brasil faz parte do segundo grupo de países crescentemente dependente de importados, pois se constitui atualmente no quarto mercado consumidor de bens e serviços digitais do mundo. Neste cenário, as possibilidades ocupacionais possíveis se limitam à difusão da precariedade cada vez mais distante da relação capital-trabalho.

O que se tem percebido é a conformação de novos sujeitos monetários que, sem acesso ao dinheiro suficiente, buscam se reproduzir como multidões desconectadas da perspectiva salarial proveniente da relação capital-trabalho. Em seu lugar ganha expressão a relação débito-crédito, compatível com às lógicas tanto tipicamente capitalista do trabalho em plataformas digitais como não capitalistas geradoras de ocupações na esfera da economia popular e de subsistência.

Diante do custo da vida definida pela ordem urbana, cabe como estratégia de sobrevivência, a adoção de ações fundadas no crédito operado por variadas formas. Pelo rebaixamento e precarização das ocupações de natureza geral, próprias do modelo econômico primário-exportador e caracterizadas pela baixa produtividade, a flexibilização laboral avançou como atividades complementares, legais ou não, dependentes da transferência de renda pública, do endividamento, entre outras.

Nesse sentido que emerge o cenário de aparente ausência de classe sociais e frações que resulta das relações difusas de trabalho. Ao comprometerem a identidade e o pertencimento coletivo terminaram por desfavorecer a atuação das tradicionais instituições de representação de interesses próprias da sociedade industrial (associações, sindicato, partido político).

Para a nova Era Digital, o sindicalismo continua fundamental. O que havia se estruturado sob a industrialização nacional tende a encontrar limites frente a digitalização da economia e da sociedade, o que exige um reposicionamento radical do sindicalismo para romper o impasse que o aprisiona.


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