O impacto dos 4 anos de Bolsonaro no SUS e as perspectivas para os próximos anos

Pamella Liz é cientista social e sanitarista, e realiza estágio de pós-doutorado na Faculdade de Saúde Pública da Universidade de São Paulo (FSP-USP), onde atua no projeto internacional "Social mobilization as policymaking lever? A Trans-Atlantic Covid-19 dialogue on community action and decentralized governance", realizado simultaneamente no Brasil, Canadá, Alemanha e Peru. Suas pesquisas analisam as representações midiáticas e científicas, e as histórias de vida de pessoas e grupos em situação de precariedade e vulnerabilidade, sob a perspectiva dos estudos de gênero, raça, classe e saúde coletiva. Em 2020, Pamella foi assistente de pesquisa no Global Urban Studies Program, na Rutgers University (NJ-EUA), e em 2021 foi pos-doc fellow no grupo Epidemic Ethics (Oxford University), liderado pela OMS (Organização Mundial da Saúde). Este artigo foi escrito para a edição 63 do boletim semanal do WBO, distribuído em 21 de abril de 2023. Para assinar o boletim, insira seu e-mail no formulário no final do artigo.


Durante os quatro anos de governo do ex-presidente Jair Bolsonaro, o SUS (Sistema Único de Saúde), já historicamente precarizado, passou por uma de suas piores gestões. Em razão de sua lógica de morte dissimulada na estratégia de “imunidade de rebanho” – em que a economia foi colocada à frente da vida dos brasileiros – ultrapassamos a marca de 700 mil mortes por Covid-19 no país. Esse número é acompanhado por diversos crimes cometidos contra a população, incluindo a divulgação de notícias falsas, fraude nas licitações para obtenção de vacinas e incentivo de tratamentos ineficazes por parte do governo. Dentre as supostas soluções milagrosas mais difundidas, estava o uso de hidroxicloroquina e ivermectina, que já haviam sido descartados como tratamento por cientistas e autoridades sanitárias.

Antes mesmo de ser eleito, ao longo de sua campanha, o ex-presidente já anunciava planos privatistas para o setor da saúde, que já operava muito abaixo de sua capacidade, em razão do teto de gastos imposto pela gestão interina de Michel Temer. A situação de subfinanciamento e sucateamento do Sistema Único de Saúde, que por si já era evidente e preocupante, transformou-se numa tragédia sem precedentes quando sobreveio a pandemia: O Brasil tem 2,7% da população mundial e concentra 11% das mortes por Covid-19 no mundo.

Além da grave situação no que diz respeito à pandemia, o caráter criminoso da gestão de Bolsonaro deixou um rastro de desmonte e desassistência na saúde brasileira como um todo. Em meio às diversas fake news propagadas contra a vacina de Covid-19, ficou também em evidência a queda vertiginosa de todas as coberturas vacinais ao longo dos últimos anos. Até 2015, o Brasil mantinha cobertura vacinal superior a 95%, para todas as vacinas do calendário nacional de imunizações. Porém, infelizmente, hoje nos encontramos com todas as coberturas vacinais para crianças abaixo de 1 ano inadequadas. Doenças já erradicadas, como poliomielite e sarampo, estão reemergindo no país. Durante o governo Bolsonaro, houve também aumento nas filas de espera para cirurgias eletivas; falta de insumos e medicamentos essenciais nas unidades de saúde, principalmente durante a pandemia; desmonte do complexo industrial da saúde (que ocasionou a enorme crise na produção de vacinas para Covid-19, a falta de máscaras e outros Equipamentos de Proteção Individual; enfraquecimento da atenção básica e da estratégia de saúde da família; e a descaracterização e criminalização do programa Mais Médicos, fundamental para suprir a carência de atendimento em regiões remotas do Brasil.

A lógica privatista aliada ao desprezo pelos mais vulneráveis, incorreu na tragédia vivida pelos Yanomami, que padeceram de desnutrição, mortalidade infantil e contaminação por mercúrio, causada pelo garimpo ilegal em territórios indígenas – um crime de genocídio denunciado ao tribunal de Haia. Além disso, concentramos também um enorme número de mulheres grávidas mortas por Covid-19, a taxa de letalidade para grávidas no Brasil chegou a ser 11 vezes mais alta que a média da América Latina e do Caribe, durante o primeiro ano de pandemia, e nada foi feito pelo governo em relação a essa situação, que chegou recomendar que as mulheres não engravidassem.

Olhar para o futuro sem esquecer do passado

Os efeitos da gestão criminosa de Bolsonaro são devastadores. Porém, temos hoje a esperança de voltar a respirar em um ambiente democrático. Após a eleição do atual presidente, Luiz Inácio Lula da Silva, a saúde voltou a ser uma prioridade para o governo, e muito trabalho está sendo feito para a reconstrução do SUS e do Ministério da Saúde. Nos últimos dias do mês de dezembro de 2022, a nova ministra da Saúde, Nísia Trindade Lima, recebeu do Grupo de Trabalho de Transição um relatório final sobre a situação em que se encontrava a Saúde depois da gestão anterior. No documento constam também as soluções pensadas pela equipe para superarmos o desmonte no setor da Saúde, dentre as quais se destacam: o resgate do compromisso com o Conselho Nacional de Saúde (CNS), fundamental para o controle social e gestão participativa no SUS; resgate da autoridade sanitária e capacidade técnica do Ministério da Saúde, com grande atenção para a segurança cibernética; reestruturação do Complexo Econômico e Industrial da Saúde; resgate das altas coberturas vacinais por meio da excelência do Programa Nacional de Imunizações (PNI); fortalecimento da capacidade de resposta do país às emergências de saúde pública, e o enfrentamento das filas na atenção especializada. Além disso, será implementado conceito de APS do Futuro (Atenção Primária à Saúde ), que busca reestruturar a atenção básica no país, e o governo pretende também lançar versões reestruturadas dos programas Mais Médicos e Farmácia Popular.

Temos ainda muito a fazer, tendo em vista a profundidade dos problemas que adquirimos. Porém, as perspectivas são positivas e o nosso sistema de saúde, apesar dos ataques, ainda possui capacidade de voltar a ser um exemplo mundial de assistência integral.

De certo, retomaremos o SUS que um dia tivemos, exemplo de excelência no que diz respeito à vacinação, especialmente à vacinação infantil, tratamento de HIV/AIDS, controle do tabaco e quebra de patentes para medicamentos de alta necessidade. Mais de 70% da população brasileira depende exclusivamente do SUS para prover suas necessidades em saúde, portanto, proteger o maior sistema público, universal e gratuito do mundo deve ser o centro da reconstrução da nossa democracia. Como disse Sergio Arouca, durante a 8° Conferência Nacional de Saúde, que deu origem ao SUS: “Democracia é saúde!”  


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