É criado o Stakeholder Group de Afrodescendentes na ONU
Por Kátia Mello*
O anúncio oficial de criação do Stakeholder Group de Afrodescendentes na ONU em maio é uma vitória histórica para Geledés-Instituto da Mulher Negra, que iniciou esse pleito na ONU em setembro de 2023. Mais do que isso, é uma vitória para todas as diásporas globais, uma vez que pela primeira vez as vozes afrodescendentes, de forma institucionalizada, são inseridas nas estruturas participativas das Nações Unidas. Além de Geledés, fazem parte da copresidência (Steering Committee) a ONG Criola e a UNARC (coalizão antirracismo da ONU).
Estabelecidos durante a Cúpula da Terra (Rio-92) os chamados Major Groups and Other Stakeholders são os grupos de articulação entre a sociedade civil e os organismos internacionais. São eles os responsáveis por fazer propostas políticas, declarações oficiais e recomendações aos Estados-membros da ONU.
Originalmente, foram estabelecidos nove Major Groups na ONU, nas seguintes áreas: mulheres, crianças e juventude, povos indígenas, Organizações Não Governamentais (ONGs), autoridades locais (governos subnacionais), trabalhadores e sindicatos, negócios e indústria, comunidade científica e tecnológica, agricultores. Ao longo do tempo, houve uma extensão para os chamados stakeholders interessados, compostos por pessoas com deficiência, idosos, comunidade LGBTQIA+, migrantes, cooperativas e agora os afrodescendentes.
O pleito por um Stakeholder Group específico para os afrodescendentes na ONU representou uma inflexão estratégica na disputa por espaços de influência nas estruturas globais de governança. Ao propor a criação desse grupo, a organização fundada e liderada por mulheres negras defendeu a ideia de inserir a agenda da justiça racial e reparatória no cerne da formulação e monitoramento dos Objetivos de Desenvolvimento Sustentável (ODS), a partir justamente de uma plataforma que possibilita trocas estruturadas com Estados, agências multilaterais e outros atores da sociedade civil.
Desde a primeira reivindicação pública pelo grupo, em setembro de 2023, Geledés passou a intensificar seus esforços nessa direção, engajando-se em articulações com instituições de diferentes continentes que enfrentam o racismo estrutural e atuam na agenda do desenvolvimento sustentável. Para essa mobilização, foi necessária uma leitura sofisticada do funcionamento dos sistemas multilaterais e a compreensão do exato papel dos Major Groups and other Stakeholders como mecanismos na intermediação entre as diferentes diásporas e os organismos da ONU.
A presença da assessora internacional de Geledés, Letícia Leobet, na sessão “Perspectivas dos Major Groups e outros Stakeholders: Parcerias para transformações e ações urgentes”, durante o Fórum Político de Alto Nível (HLPF), em julho de 2024, reforçou esse posicionamento. Sua intervenção destacou a urgência de mecanismos que não apenas incluam, mas também deem protagonismo às vozes afrodescendentes nos debates sobre transformação global e justiça intergeracional.
Essa atuação teve continuidade em setembro de 2024, em Nova York, em paralelo à Cúpula do Futuro, com o evento “Abordando o Racismo Como Uma Questão Central na Agenda Global para o Futuro”, promovido por Geledés. Nele, Leobet reiterou novamente a necessidade de institucionalizar um mecanismo específico para a comunidade afrodescendente. A proposta refletia uma crítica implícita à sub-representação histórica desse grupo nas estruturas decisórias internacionais, ao mesmo tempo em que apontava caminhos para reposicionar a luta antirracista no contexto das transições globais contemporâneas.
De Durban à ONU
Historicamente, a criação do Stakeholder Group de Afrodescendentes remete à uma luta antirracista contínua e árdua explicitada durante a Conferência Mundial contra o Racismo, que aconteceu em Durban, na África do Sul em 2001. Foi nesta conferência em que o racismo finalmente foi reconhecido como estrutural, sistêmico e global, e que a agenda de reparações se inseriu na agenda internacional.
Neste momento de ataques ao multilateralismo global, o novo Stakeholder Group de Afrodescendentes surge para garantir, como um mecanismo institucional permanente, que os compromissos assumidos há duas décadas em Durban sejam verdadeiramente implementados nos frames da Agenda 2030, do Pacto do Futuro, das agendas de financiamento para o desenvolvimento, dentre outras.
Com o encerramento da Primeira Década Internacional dos Afrodescendentes (2015–2024) e a recente proclamação da Segunda Década Internacional (2025–2034) pela Assembleia Geral da ONU, um novo arranjo está emergindo como uma aposta de continuidade da luta por reconhecimento e justiça. Embora a década anterior tenha registrado avanços importantes nas pautas da população afrodescendente, os anseios por reconhecimento, justiça e desenvolvimento ainda permanecem amplamente insatisfeitos.
Nesse contexto, o Stakeholder Group desponta como uma resposta concreta à exclusão histórica dessa população dos mecanismos participativos da ONU. Alinhado com o espírito e as metas renovadas para a nova década, o grupo vem para ampliar a voz dos afrodescendentes, fortalecendo sua presença e necessária influência na participação dos debates globais.
*Kátia Mello é jornalista de Geledés e Mestre em Estudos Africanos pela Universidade de Birmingham, no Reino Unido