As relações entre Brasil e Índia a partir do nexo multilateral: da Conferência de Bandung à Cúpula do BRICS de 2025
Por Matheus Petrelli*
A cúpula do Brics, realizada no Rio de Janeiro, em junho de 2025, direcionou destaque midiático e público para os debates contemporâneos que permeiam as dinâmicas do sistema internacional. Ao possuir cerca de 50% da população mundial e representar, aproximadamente, 40% de todo o PIB global, o bloco, formado por Brasil, Rússia, Índia, China, África do Sul, Irã, Indonésia, Egito, Etiópia e Emirados Árabes Unidos, se apresenta como um novo polo de poder e influência internacional.
Além da diversidade de compromissos acordados, o evento promoveu encontros entre diversas lideranças nacionais. Dentre elas, a presença do primeiro-ministro indiano, Narendra Modi, extrapolou a cúpula. Convidado para uma visita de Estado em Brasília após o evento do bloco, o governo brasileiro aproveitou a estadia do líder indiano em território nacional para ampliar o diálogo político e aprofundar a cooperação com a Índia. A partir da crescente relevância do Brics e das relações indo-brasileiras, compreender seu histórico se faz necessário.
Embora os laços diplomáticos tenham se iniciado oficialmente apenas em 1948, o vínculo entre os países remonta à períodos pré-coloniais. Pedro Álvarez Cabral, ao chegar em território brasileiro, buscava rotas alternativas para alcançar as valiosas especiarias presentes na Ásia – ou nas “Índias”. Além disso, apesar da maior parte do território indiano ter sido invadido pelos britânicos, Portugal foi responsável por colonizar uma porção da Índia. O Estado português na Índia era composto por regiões próximas de Goa, Damião e Diu, no sudoeste do subcontinente. Embora o país tenha se tornado independente em 1947, o domínio português seguiu até 1961.
Postas as particularidades de cada processo, assim como o Brasil, a Índia também sofreu com o colonialismo português. Além de todas as consequências paralelas que o processo colonial gerou, a relação indo-brasileira iniciou-se de forma conturbada, cerceada, também, pela metrópole colonizadora. Após conseguir sua independência do Reino Unido, a Índia ainda batalhava pelos territórios controlados pelo Estado português. Durante o processo de negociação, houve o rompimento diplomático entre a União Indiana e o governo de Portugal. A partir disso, o país europeu solicitou que o governo brasileiro assumisse a representação oficial dos interesses portugueses. Com um posicionamento de apoio incondicional à Portugal, a postura do Brasil gerou desapontamento e insatisfação indiana. Esse cenário passou a mudar durante o mandato de Juscelino Kubistchek com o aumento do interesse brasileiro no mercado afro-asiático. O marco dessa aproximação com a Índia foi o encontro do diplomata brasileiro José Cochrane com o primeiro-Ministro indiano Jawaharlal Nehru, em Délhi, no início da década de 1960.
Em paralelo a sua luta nacional, a Índia foi um dos países que defenderam, internacionalmente, a pauta da autodeterminação dos povos e da descolonização. Foi nesse sentido que, em 1955, o governo indiano, como um dos membros organizadores, participou da Conferência de Bandung. Tal encontro, conhecido como um dos precursores do Movimento dos Não-Alinhados (MNA) e do associativismo terceiro-mundista, foi de extrema relevância em um contexto de disputa por influência internacional entre Estados Unidos e União Soviética. Esse contexto de bipolaridade marcou outra divergência entre o Brasil e a Índia. Enquanto o primeiro – muito por conta de sua posição geográfica e da influência geopolítica exercida pelos EUA na América do Sul – se alinhou ao bloco ocidental, o governo indiano – mesmo exercendo posições de liderança no MNA – possuía relações mais próximas com a URSS. Apesar de posturas relativamente opostas, por convergirem em agendas como o direito ao desenvolvimento, à autodeterminação dos povos e a descolonização, a Índia convidou, de forma extra-oficial, o Brasil para se tornar membro pleno do MNA. Na segunda cúpula do movimento, realizada em 1961, o governo brasileiro participou do encontro como observador, porém se limitou a essa posição.
Pouco tempo depois, a pauta convergente de defesa do direito ao desenvolvimento retornou ao centro da relação indo-brasileira. Em 1964, a criação da Conferência das Nações Unidas sobre Comércio e Desenvolvimento (UNCTAD) surgiu a partir da exigência de países, como o Brasil e a Índia, que desejavam o estabelecimento de um espaço permanente internacional direcionado a agenda desenvolvimentista. A partir disso, constituiu-se um novo órgão na Organização das Nações Unidas (ONU), que, além de representar a força política do, na época, terceiro-mundo, serviu como ambiente para o aumento da articulação entre esses países.
Assim, ao fim da primeira conferência da UNCTAD, 77 países em desenvolvimento assinaram uma Declaração Conjunta na qual buscavam promover a cooperação Sul-Sul. Formou-se assim, o G77.
Todo esse contexto de criação de ambientes multilaterais de cooperação entre países em desenvolvimento foi essencial para a aproximação da relação indo-brasileira. A convergência dos dois países quanto essa agenda fez com que, durante diversos momentos, ambos articulassem posicionamentos conjuntos. Além da UNCTAD e do G77, outro ponto comum entre Brasil e Índia foi a oposição ao Tratado de Não Proliferação (TNP), de 1967. Apontado pelo então chanceler brasileiro, Araújo Castro, como o congelamento do poder mundial e, pelo governo indiano, como um apartheid nuclear, a proposta sofreu críticas contundentes de ambos países.
Apesar do contexto da Guerra Fria ter aproximado os países a partir, principalmente, da pauta do desenvolvimento, foi após seu término que Brasil e Índia têm promovido uma maior aproximação. Com a dissolução de seu principal aliado comercial e militar – URSS –, o governo indiano, a partir da década de 1990 e dos anos 2000, precisou reinventar sua política externa. Em paralelo, os atentados de 11 de setembro de 2001 fizeram com que os EUA buscassem uma reaproximação com a Índia. A política externa estadunidense de guerra ao terror e o aumento do interesse estratégico no Paquistão – rival histórico da Índia – por parte de Washington, fez com que Délhi conseguisse se reinserir na dinâmica do sistema internacional no pós-Guerra Fria.
Apesar do vínculo com os EUA, a política externa indiana manteve-se alinhada à defesa de suas pautas basilares. Com objetivo de promover a integração comercial, redução internacional da desigualdade, dentre outras agendas de cooperação Sul-Sul, novamente, a partir de convergências indo-brasileiras, foi criado, em 2003, o Fórum de Diálogo IBAS.
Dessa vez, além do Brasil e Índia, a África do Sul se somou como membro do grupo, representando, mais uma vez, um mecanismo que reflete a defesa de pautas comuns entre os governos brasileiro e indiano, como o desenvolvimento social.
Seguindo o processo de aproximação, no ano seguinte, em 2004, Brasil e Índia, junto com Alemanha e Japão formaram o G4. A coalizão, que buscava uma reforma no Conselho de Segurança das Nações Unidas (CSNU), postulava o aumento no número de assentos permanentes. Desde o fim da Segunda Guerra Mundial, o CSNU é formado por 15 países. Desses, 5 são fixos – China, Estados Unidos, França, Reino Unido e Rússia – e 10 rotativos, que possuem mandatos de dois anos. Argumentando que o conselho não possuía a representatividade correspondente às dinâmicas internacionais do século XXI, o G4 propôs a entrada dos quatro países e de mais dois, eleitos pela União Africana, como membros permanentes no CSNU. Apesar de, até os dias atuais, a coalizão não ter alcançado seu objetivo, a presença de Brasil e Índia demonstra, mais uma vez, o alinhamento entre suas políticas externas e o papel de destaque dos países do Sul Global.
Na mesma década, em 2006, um novo e significativo capítulo da relação indo-brasileira foi iniciado. Além da assinatura da Parceria Estratégica entre os dois Estados, às margens da Assembleia-Geral das Nações Unidas (AGNU), ocorreu a primeira reunião do Brics. O acrônimo formado com as iniciais de Brasil, Rússia, Índia e China foi escolhido como nome para o foro de cooperação entre os países. Após a crise econômico-financeira de 2008, que atingiu, principalmente os países centrais, os quatro Estados fundadores passaram a buscar atuar de forma coordenada em fóruns multilaterais, como o Banco Mundial, Fundo Monetário Internacional (FMI) e G20. Com objetivo de adotar posições de maior destaque internacional, o BRIC – que se tornou Brics após a entrada da África do Sul, em 2011 - passou a atuar como uma das representações do Sul Global com maior influência no sistema internacional. Em 2009, no mesmo ano da primeira Cúpula de Chefes do Brics, durante a COP15, Brasil, África do Sul, Índia e China estabeleceram a criação do BASIC. O bloco, que tem como principal propósito fortalecer o debate acerca de agendas relacionadas ao clima, é mais um ambiente multilateral no qual os governos brasileiro e indiano articulam suas políticas externas.
Portanto, após introduzir os principais fóruns de cooperação internacional entre Brasil e Índia, é possível perceber a existência de convergências políticas e econômicas históricas e uma crescente relevância. Apesar do início conturbado de suas relações bilaterais, a defesa do direito ao desenvolvimento, principalmente no âmbito da criação da UNCTAD, do G77 e da oposição ao TNP, demonstra que, mesmo próximo de potências opostas – EUA e URSS –, os países conseguiram convergir, até certo ponto, suas agendas internacionais. A articulação desses países, antes marginais à disputa bipolar, fez com que estes possuíssem crescente relevância internacional. Mais recentemente, a partir da crise de 2008, a nova dinâmica imposta pelas disputas comerciais e políticas entre EUA e China, a Guerra entre Rússia e Ucrânia e os diversos conflitos pelo mundo remontam a relevância do Sul Global para as dinâmicas internacionais.
O atual contexto apresenta uma tendência de transição de um sistema, praticamente, unipolar – sob liderança, direta ou indireta, dos EUA – para um multipolar. A partir desse novo cenário, blocos que reúnem as principais potências emergentes, como IBAS, G4, BASIC e Brics, aumentam o poder de influência internacional de seus membros. A cúpula do Brics de 2025, realizada no Brasil, por exemplo, marcou o compromisso dos membros com o multilateralismo e a reforma da governança global. Países como o Brasil e a Índia, que postulam por maior protagonismo e convergem em diversas agendas, utilizam esses blocos e coalizões para alcançarem posições de maior relevância no processo decisório do sistema internacional. Dessa maneira, compreender o histórico da relação indo-brasileira se torna essencial para analisar o presente e, ainda mais necessário, para projetar novas parcerias em um futuro, no qual o Sul-global ganha cada vez mais relevância.
*Matheus Petrelli é mestrando em Economia Política Internacional na Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ) e bacharel em Defesa e Gestão Estratégica Internacional pela UFRJ.