As leis da grilagem no Brasil
Por Gabriel Suchodolski*
O Brasil é um líder global na agricultura e em investimentos fundiários — mas também nos assassinatos de defensores ambientais e no desmatamento tropical que causa secas, enchentes e extinções em massa. Dos 8,5 milhões de km² do território brasileiro, metade apresenta sobreposições de categorias fundiárias, um sexto está ausente de mapas cadastrais oficiais, 6,4% não possui destinação oficial, e quase 10% estava sob conflito por terra em 2022. O que explica essa expansão desordenada e violenta de fronteiras, que ameaça povos indígenas, ecossistemas e até a viabilidade da própria agricultura?
A raiz do problema está na longa história de expansão, dirigida pelo estado ou extralegal, sobre florestas interpretadas como “vazias” ou “subutilizadas”. Essas frentes agrárias avançaram por mecanismos formais, como concessões estatais e planos regionais, e por vias informais, incluindo a usurpação fundiária. A governança da terra no Brasil tem cedido repetidamente à pressão de elites fundiárias poderosas, enquanto a baixa capacidade burocrática deixou os sistemas de informação fundiária, as terras indígenas e as florestas vulneráveis à grilagem predatória.
Há mais de cinco séculos, brasileiros exploram ambiguidades legais para apropriar-se de terras. Legislações apoiadas por elites concederam anistia a usurpações passadas reiteradamente, alimentando expectativas de que a ocupação ilegal de hoje pode tornar-se um título legal no futuro. Todas as principais leis fundiárias reconheceram tanto a documentação oficial quanto os direitos de posse, desde as sesmarias coloniais às propostas legislativas atuais. As terras públicas foram definidas em termos negativos: tudo aquilo que ainda não foi privatizado. Diante da limitada capacidade estatal para obrigar agrimensura e registros, e da resistência de muitos proprietários à regularização (para evitar tributos e desapropriações, ou com esperança de expandir seus domínios), vastas áreas de terras públicas permaneceram sem registro século XXI adentro. Essa combinação de ambiguidade legal com baixa capacidade estatal tende a favorecer pessoas bem-providas de recursos— aquelas capazes de produzir documentos, sustentar litígios, coagir concorrentes e influenciar governos — enquanto quem perde são indígenas, camponeses e florestas.
Durante o período colonial (1500–1822), elites brasileiras se aproveitaram da complexidade no regramento fundiário para manter autonomia em relação a Portugal e dominar os segmentos sem terra, formando os latifúndios. Camponeses posseiros — migrantes pobres e pessoas escapando da escravidão ou dos latifúndios — expandiram lentamente as fronteiras agrícolas de maneira informal. Após a independência, a Constituição de 1824 estabeleceu o direito à propriedade privada, mas a ausência de uma lei de terras até 1850 levou à apropriação informal generalizada. A Lei de Terras de 1850 reconheceu direito de propriedade por meio de transferências oficiais e vendas (embora também tenha reconhecido direitos usufrutários que posseiros eventualmente reivindicaram). No entanto, a fragilidade da burocracia estatal fez com que os registros fundiários fossem tratados por cartórios e registros privados, que muitas vezes aceitaram declarações de clientes e simples contratos de compra e venda.
Assim surgiu a indústria da grilagem. Grileiros forjaram documentos para registrar terras, legalizar usurpações e vendê-las visando lucro. A grilagem agravou os conflitos fundiários, muitas vezes para benefício das elites. O sistema formal de propriedade fundiária do Brasil, construído décadas antes da abolição da escravidão em 1888, ajudou a consolidar a extrema desigualdade no acesso à terra.
No século XX, os esforços para ocupar o interior do Brasil envolveram projetos de colonização ambiciosos e a criação de burocracias fundiárias modernas. A partir de 1943 e crescentemente durante a ditadura militar a partir de 1964, o estado planejou a ocupação de terras ao longo de novas rodovias rumo à Amazônia. O fluxo de fazendeiros capitalistas e colonos espontâneos, no entanto, sobrecarregou os planos e as burocracias estatais — gerando expulsões em massa, etnocídio e desmatamento. A sociedade civil reagiu com demandas por reforma agrária, reconhecimento de terras indígenas e proteção ambiental. Esses movimentos culminaram na consagração de direitos territoriais plurais na constituição democrática de 1988. No entanto, tais direitos pouco significam sem sua eficácia, e a maior parte desses territórios continua classificada como “terra pública,” dependente de órgãos fundiários frágeis para sua implementação e proteção.
No século XXI, elites do agronegócio passaram a defender a “segurança da propriedade privada” e a privatização de terras públicas. Uma série de reformas legislativas — apelidadas de leis da grilagem— novamente legalizaram reivindicações privadas sobre terras públicas. Entre 2005 e 2017, cinco leis (e medidas provisórias presidenciais) expandiram progressivamente o tamanho dos lotes elegíveis, flexibilizaram os critérios de beneficiários, ampliaram os prazos de ocupação considerados, incluíram novas categorias de terras públicas e dispensaram exigências de vistoria presencial. Com isso, empresas privadas (não apenas residentes e agricultores familiares) podem legalizar propriedades de até 2.500 hectares em áreas ocupadas até 2008. Essas declarações podem ser feitas pelas partes interessadas em sistemas digitais georreferenciados como o CAR e o SIGEF, com dispensa de vistoria in loco para lotes de até 400 hectares. Quando os mapas digitais não apontam sobreposições, as reivindicações costumam ser aprovadas.
Propostas legislativas atuais vão ainda mais longe. O Projeto de Lei 2.633/2020, já aprovado pela Câmara e aguardando apreciação no Senado, dispensa vistoria para lotes de até 600 hectares. O PL 510/2021, proposto no Senado, eleva esse limite para 2.500 hectares e estabelece o ano de 2012 como novo marco para ocupações válidas.
Enquanto isso, o Congresso aprovou a regra do ‘marco temporal’ (Lei 14.701/2023), que restringe o reconhecimento de terras indígenas àquelas ocupadas e documentadas em 1988, ano de promulgação da Constituição. O Supremo Tribunal Federal considerou a regra inconstitucional, e o presidente Lula vetou a lei, mas a pressão política para limitar os direitos territoriais indígenas permanece forte.
Em suma, o Brasil tem acelerado os caminhos para a privatização de terras públicas, enquanto os direitos constitucionais de povos indígenas e áreas de conservação ambiental continuam dependentes de burocracias frágeis para sua implementação e defesa. Além de estratégias legais, a cooperação internacional deve contribuir para o fortalecimento das burocracias fundiárias brasileiras — com concursos públicos, equipamentos, orçamento e autonomia política para cumprir suas missões— a fim de proteger terras indígenas e a conservação ambiental contra os ataques constantes de uma minoria grileira com poderosas conexões no governo.
*Gabriel Suchodolski é Postdoctoral Research Fellow no Earth Commons Institute, Georgetown University, em Washington DC. PhD em Sociologia na Universidade da Califórnia em Los Angeles. Sua pesquisa se concentra em política fundiária e desmatamento na Amazônia.
Este artigo foi escrito para a edição 166 do boletim do WBO, de 16 de maio de 2025. Para ser assinante e receber gratuitamente, toda semana, notícias e análises como esta, basta inserir seu e-mail no campo indicado.