Democracia Negada, Demarcação Adiada: Sobre os Perigos Políticos e Ambientais do Marco Temporal
Por Tracy Devine Guzmán*
Os povos indígenas no Brasil representam 0,83% da população total do país e habitam Terras Indígenas (TIs) oficialmente designadas como tais, que abragem 13,9% do território nacional. A discrepância entre esse número relativamente pequeno de pessoas — 1.694.836, segundo o Censo de 2022 — e uma enorme extensão territorial tem sido a raiz de disputas políticas e da violência social e ambiental verificada no país ao longo de décadas.
Mesmo antes da promulgação da Constituição Federal em 1988, autoridades e discursos anti-indígenas já opunham o bem-estar indígena ao da nação, evocando um conjunto amorfo de interesses econômicos, políticos, sociais e de segurança nacional aos quais os povos indígenas e seus direitos representariam uma suposta ameaça.
Em 2025, a versão mais recente desse discurso aparece no marco temporal, ou na chamada “tese do marco temporal” — uma lei que o STF (Supremo Tribunal Federal) considerou inconstitucional em setembro de 2023, mas que foi restituída três meses depois por uma maioria parlamentar grande o suficiente para derrubar o veto do presidente Lula.
Este artigo argumenta que, apesar do apoio significativo que o marco temporal tem entre a população brasileira, ele representa um grande perigo não apenas para a vida e os meios de subsistência dos povos indígenas, mas também para a integridade da democracia brasileira e para o futuro ambiental do país, da região e do mundo.
Embora os direitos territoriais indígenas limitados tenham aparecido nas Constituições brasileiras de 1934 e 1967, eles assumiram sua forma atual como “direitos originários” após a Assembleia Constituinte de 1987, pós-ditadura, durante a qual acadêmicos e ativistas indígenas desempenharam um papel fundamental na construção de sua própria existência jurídica. A Constituição de 1988 estabeleceu os direitos dos povos indígenas sobre as terras que eles “tradicionalmente ocupam”, bem como a responsabilidade da União de “demarcá-las, proteger e fazer respeitar todos os seus bens”. Especificou ainda que as terras indígenas são “inalienáveis” e “indisponíveis”, e que os direitos indígenas sobre essas terras são “imprescritíveis”. Por fim, o Artigo 67 do Ato das Disposições Constitucionais Transitórias estabeleceu que “a União concluirá a demarcação das terras indígenas no prazo de cinco anos a partir da promulgação da Constituição — uma obrigação que não foi cumprida e, em vez disso, tem sido recebida com crescente oposição e hostilidade.
Em contradição com a linguagem da Constituição, o marco temporal sustenta que os povos indígenas não têm direito a terras além daquelas que ocuparam, ou às quais documentaram uma reivindicação legal, a partir de 5 de outubro de 1988 — dia da promulgação da Constituição. No entanto, como muitos juristas notam, essas condições são problemáticas porque ignoram muitos fatores importantes. Primeiro, muitas comunidades indígenas foram removidas de suas terras antes de 1988, particularmente como resultado das campanhas de modernização e infraestrutura da ditadura de 1964-85. Segundo, os povos indígenas não tinham o poder de se representar em juízo antes de 1988 devido à sua condição legal de “tutelados do Estado”. Terceiro, os povos indígenas que vivem em isolamento voluntário frequentemente têm pouco ou nenhum contato com o sistema judiciário brasileiro e, portanto, carecem de documentação para fundamentar formalmente as reivindicações de terras. Agravando essas circunstâncias, está o fato de que mesmo os limites legalmente estabelecidos das Terras Indígenas são, em muitos casos, disputados ou desprotegidos, deixando-os vulneráveis à tomada de posse por meio de força bruta e de elaboradas ações criminosas. O marco temporal, portanto, cria uma situação jurídica impossível para os povos indígenas, minando sua capacidade de reivindicar a ocupação legítima ou a posse permanente de terras tradicionais e enfraquecendo sua capacidade de navegar pelos longos e labirínticos processos legais necessários para demarcar oficialmente essas terras. Além disso, está bem documentado que a demarcação formal é uma condição necessária, mas insuficiente, para proteger as Terras Indígenas da intrusão violenta ou da usurpação ilegal por entidades que representam interesses extrativistas ou neocoloniais, como a mineração artesanal, a pecuária e a cultura da soja.
Em agosto de 2024, o impasse jurídico sobre a designação e demarcação de Terras Indígenas levou o ministro do Supremo Tribunal Federal Gilmar Mendes a convocar uma “comissão de conciliação” entre as partes interessadas, com a intenção de chegar a um resultado negociado por meio do qual concessões específicas a interesses extrativistas importantes pudessem ser trocadas pelo arquivamento total do marco temporal. Líderes indígenas da sociedade civil se opuseram à proposta, argumentando que seus direitos constitucionais não eram negociáveis e acusando os principais representantes indígenas do Estado — a ministra dos Assuntos Indígenas, Sonia Guajajara, e a presidente da Funai, Joenia Wapichana — de manterem um silêncio desconfortável, com o qual se abstiveram de defender os interesses mais amplos do movimento. À luz desses desafios contínuos à constitucionalidade e à governança democrática, o dilema jurídico do marco temporal criou novas fissuras dentro do delicado movimento indígena brasileiro, ao mesmo tempo em que colocou em risco a regra constitucional e a perspectiva ecológica do país. Essas questões agora se unem em torno da programação da próxima COP30, a ser realizada no estado amazônico do Pará. Os povos indígenas têm feito lobby para desempenhar um papel central como colíderes do evento, reforçando seu protagonismo com a noção de que “a resposta somos nós”.
O uso das terras indígenas, é claro, nunca foi um monolito. Pesquisadores têm investigado os compromissos conservacionistas das comunidades indígenas por décadas, frequentemente questionando as práticas extrativistas operadas ou facilitadas pelos povos indígenas em suas próprias terras, seja de forma sustentável e com permissões legais, ou de outra forma. Para complicar ainda mais esse cenário, e para grande consternação de líderes, comunidades e defensores indígenas, a tensa empreitada de “conciliação” do ministro Gilmar Mendes inclui propostas para autorizar algumas das formas de extrativismo mais devastadoras para o meio ambiente, revivendo propostas legislativas controversas outrora defendidas pelos presidentes Michel Temer e Jair Bolsonaro, que buscaram, e acabaram falhando, em abrir legalmente as Terras Indígenas para mineração e exploração de hidrocarbonetos. Os opositores desses esforços, passados e presentes, contam com o apoio de uma comunidade diversificada de cientistas indígenas, nacionais e internacionais, que fornecem evidências abundantes de que os povos indígenas são os guardiões predominantemente responsáveis de suas terras, levando também em consideração os complexos contextos sociopolíticos e culturais nos quais diversas formas de extrativismo ocorrem.
Este amplo conjunto de trabalhos corrobora a descoberta de Wayne Walker e de um grupo de 18 acadêmicos internacionais, em 2020, de que os povos indígenas desempenham um papel crucial na conservação internacional da Amazônia, visto que suas terras protegidas sofrem significativamente menos desmatamento e degradação do que as áreas não indígenas. Por exemplo, o projeto MapBiomas constatou que, entre 1985 e 2023, as Terras Indígenas em todo o país perderam menos de 1% de suas áreas florestais, enquanto as terras privadas perderam quase 28% no mesmo período. Dados de satélite indicam que os povos indígenas brasileiros que integram a ciência indígena e não indígena para proteger suas terras representam um impedimento substancial à destruição da floresta tropical, ao mesmo tempo em que reforçam o armazenamento de carbono e protegem a biodiversidade, mitigando assim as mudanças climáticas. Um estudo comunitário de 2025 sobre a perda florestal no sudoeste da Amazônia, realizado por um grupo de pesquisadores indígenas e não indígenas, encontrou correlações entre baixos níveis de desmatamento e a presença de estruturas tradicionais de governança e liderança; línguas nativas e escolaridade; e economias baseadas na terra, incluindo seres mais do que humanos.
Com mais água doce superficial do que qualquer outro país da região (ou do mundo), o Brasil também está em posição crítica para proteger rios, nascentes e aquíferos frágeis (muitos dos quais residem ou passam por áreas indígenas), que foram comprometidos pela sobrepesca em massa, contaminação catastrófica da mineração ou pelos impactos desastrosos da energia hidrelétrica. Embora o marco temporal não aborde diretamente os sistemas hídricos, tanto a legislação quanto a proposta de conciliação de Mendes têm o potencial de impactar a gestão indígena dos recursos hídricos e criar um impacto devastador nas comunidades dependentes dos rios, que reconhecem as águas como seres sagrados e ancestrais vivos, em vez de um recurso dispensável. Ailton Krenak explicou assim a decisão de sua comunidade de permanecer em suas casas depois que um consórcio de mineradoras destruiu o Rio Doce em 2015 com toneladas de lodo tóxico de uma barragem de rejeitos rompida em Mariana (Minas Gerais): “O rio é uma extensão da nossa família. Vamos ficar aqui para zelar por ele.” A simples observação de Krenak destaca a incomensurabilidade fundamental entre os engajamentos indígenas tradicionais com o mundo natural que nós, “povos da ecologia” (termo de Davi Kopenawa), passamos a chamar de “meio ambiente”, e a mercantilização conveniente desse mundo por proponentes do extrativismo voraz, cujo objetivo primordial e trágico é torná-lo mais “útil”.
Os debates em curso sobre o marco temporal e a proposta de conciliação que preserva suas facetas mais antiindígenas em uma nova embalagem tornaram-se, portanto, uma metonímia para o estado em que se encontra hoje o regime democrático e o ambientalismo no Brasil, pois ambos continuarão a ser testados durante um governo Lula que é comparativamente mais progressista, mas que está paralisado; e de um Congresso Nacional profundamente antiindígena. Confiar em 0,83% da população para salvar a democracia e o planeta é pedir muito a uma sociedade nacional que frequentemente se mostrou antagônica ou indiferente aos interesses indígenas. Mas talvez os povos não indígenas no Brasil (e em outros lugares) reconheçam que apoiar os direitos territoriais indígenas não é uma proposta de soma zero que só os prejudica, mas sim um investimento consciente e paciente em um futuro político e ecológico compartilhado. A demarcação não é apenas uma obrigação legal, mas também uma estratégia climática essencial — que exige fidelidade constitucional e vontade ecopolítica sustentada.
*Tracy Devine Guzmán é professora associada de Estudos Latino-Americanos na Universidade de Miami.
Este artigo foi escrito para a edição 167 do boletim do WBO, de 23 de maio de 2025. Para ser assinante e receber gratuitamente, toda semana, notícias e análises como esta, basta inserir seu e-mail no campo indicado.