Para Além da Amazônia: O Bioma do Cerrado e a COP 30

Por Dandara Tonantzin*


Em meio ao alvoroço pelas florestas amazônicas, um gigante silencioso clama por atenção: o Cerrado. Segundo maior bioma da América do Sul, ele ocupa 2.036.448 km² – o equivalente a 22% do território brasileiro, espalhando-se por dez estados e o Distrito Federal (Goiás, Mato Grosso, Mato Grosso do Sul, Minas Gerais, Maranhão, Bahia, Piauí, Tocantins, Roraima e Pará). Mas, na esteira dos debates acalorados da COP 30, por que o Cerrado permanece relegado ao segundo plano?

Desde as primeiras luzes do dia até o cair da noite, o Cerrado pulsa vida: abriga quase 30% das águas superficiais do país, alimentando dezenas de bacias que banham outros biomas. E, no entanto, vive sob a chancela de leis mais flexíveis que permitem uma exploração sem freios – a reserva legal ali corresponde a apenas 20% da propriedade, contra 80% exigidos na Amazônia. Nas áreas enquadradas na Amazônia Legal, esse índice aumenta para 35%, mas, em grande parte do bioma, a lógica é nítida: tratar o Cerrado como zona de sacrifício.

É o que se extrai dos dados do Relatório Anual do Desmatamento no Brasil, da rede MapBiomas, divulgados neste mês de maio de 2025, apontam que o Cerrado foi o ecossistema brasileiro mais devastado em 2024: 652.197 hectares.

A meta de Desmatamento Zero do presidente Lula até 2030, muito por conta disso, corre risco apesar dos avanços no desmatamento na região amazônica, conforme constatam estudos do Instituto Nacional de Pesquisas Espaciais (Inpe) e da Universidade de São Paulo.

O Relatório aponta uma redução de 32,4% no desmatamento, considerados todos os biomas brasileiros – destaque para a região amazônica, que registrou uma queda 54% entre 2022 e 2024. Este são dados que comemoramos, frutos do esforço do governo do presidente Lula em reverter a política anterior de “passar a boiada”, nas palavras do então ministro do Meio Ambiente do governo Bolsonaro.

Mas no Cerrado a situação se inverte: especialmente na Matopiba, região do nordeste do país que registrou 75% do desmatamento do Cerrado e 42% de toda a perda de vegetação nativa no país, como informa reportagem do portal G1.

O principal vetor desse desmatamento é a expansão agropecuária. Fazendas se estendem, máquinas ceifam palmas e raízes, e o solo degradado deixa de cumprir seu papel de esponja natural. Consequência direta: as nascentes secam, o ciclo hidrológico se rompe e outras regiões sofrem no rastro da devastação. O Rio São Francisco, que mata a sede de 15 milhões de brasileiros, já sente a pressão; a bacia do Tocantins perde volume em áreas cruciais para a irrigação; e o Pantanal, um dos maiores pantanais do mundo, arrefece sua exuberância.

Mas o impacto vai muito além dos mapas e gráficos. No Cerrado, age também o racismo ambiental, um arbusto espinhoso que mata lentamente comunidades vulneráveis: povos indígenas, quilombolas, agricultores familiares e populações tradicionais. A perda de terra e recursos naturais torna-se sinônimo de exílio forçado; a contaminação de água e solo, de doenças respiratórias e problemas de saúde crônicos; e a erosão cultural, de um empobrecimento irreversível de saberem ancestrais. Tudo isso embalado por uma sinfonia de violações de direitos humanos.

Por trás desse quadro sombrio, há raízes profundas: a desigualdade fundiária, que concentra terras nas mãos de poucos; a falta de reconhecimento legal de territórios tradicionais; a discriminação institucional que silencia vozes; políticas públicas desenhadas mais para favorecer o agronegócio do que para proteger ecossistemas e populações. É uma combinação explosiva de poder econômico predatório e omissão estatal.

Ainda podemos escolher outro caminho. Primeiro, reconhecendo oficialmente os direitos territoriais – demarcações imediatas e seguras para povos indígenas e quilombolas. Precisamos assegurar a implementação de políticas públicas inclusivas, que integrem a participação das comunidades tradicionais na gestão dos recursos naturais. É urgente também investir em educação ambiental, desde as escolas até programas de extensão rural, para mostrar que conservar o Cerrado é garantir água, clima estável e alimentos saudáveis. A justiça ambiental precisa avançar com vigor. Precisamos assumir o compromisso do desenvolvimento sustentável que harmonize a produção agropecuária com floresta em pé – modelos de integração lavoura-pecuária-floresta (ILPF) já demonstram resultados positivos em solo cerrado.

Na reta final rumo à COP 30, o Cerrado espera mais do que menções protocolares: busca compromissos sólidos, metas ambiciosas e financiamento real para sua conservação. Porque, se ignorarmos esse gigante de biodiversidade e fonte de água, condenaremos não só a nós mesmos, mas as futuras gerações a um cenário de escassez, conflitos e crises socioambientais. A hora de agir é agora – cada árvore preservada, cada riacho que ainda corre, cada comunidade que resiste, é um grito de vida que ecoa para além do Cerrado.


*Dandara Tonantzin é deputada federal (PT/MG), presidenta da Comissão da Amazônia e dos Povos Originários e Tradicionais da Câmara dos Deputados, e coordenadora do Grupo em Defesa do Cerrado da Frente Parlamentar Ambientalista.

 Este artigo foi escrito para a edição 168 do boletim do WBO, de 30 de maio de 2025. Para ser assinante e receber gratuitamente, toda semana, notícias e análises como esta, basta inserir seu e-mail no campo indicado.

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