Como as ameaças dos EUA à Venezuela afetariam a liderança brasileira na América do Sul
Por Carolina Silva Pedroso*
Se havia alguma dúvida sobre quão hostil tem sido a política de Donald Trump para a América Latina, seu discurso na Assembleia-Geral da ONU, no dia 23 de setembro, foi esclarecedor. Após discorrer sobre as supostas ameaças que os imigrantes latinos representariam, o presidente estadunidense mirou seus ataques à Venezuela. Segundo ele, os atentados às embarcações venezuelanas teriam barrado a entrada de drogas em seu país e, por consequência, impediram a morte de milhares de seus cidadãos. Na mesma toada, afirmou categoricamente que as organizações “terroristas” de narcotráfico seriam as “piores gangues do mundo”. O recado foi breve, mas direto: a escalada de tensões no Caribe seguirá.
Para o Brasil, há pelo menos dois grandes motivos de preocupação para o exercício de sua liderança regional. O primeiro tem a ver com princípios basilares de sua inserção internacional, como a resolução pacífica de controvérsias e a consolidação de uma zona de paz no seu entorno geográfico. Há décadas, a política exterior brasileira concebe uma ideia de vocação natural para liderar, se não a América Latina como um todo, a América do Sul. Para além das dimensões continentais e do peso econômico, o Brasil compartilha fronteiras com praticamente todos os países do subcontinente e incorporou à sua prática diplomática um papel conciliador, a fim de evitar conflitos entre os vizinhos.
Essa noção se reflete na Zona de Paz e Cooperação do Atlântico Sul (ZOPACAS, uma iniciativa para a manutenção da paz na porção sul do Oceano Atlântico, fomentando uma governança compartilhada para evitar ingerências externas. Ainda que o Caribe – região que tem sido fustigada pelos equipamentos bélicos norte-americanos – não pertença propriamente ao Atlântico Sul, está geograficamente muito próxima do que é essa área de projeção pacífica liderada pelo Brasil.
Ademais, trata-se de uma ruptura com o que foi acordado em Tlatelolco, em 1967, no contexto posterior à crise dos Mísseis de Cuba de 1962, quando a Guerra Fria quase levou o mundo a uma hecatombe nuclear. Impulsionado pelo ativismo da chancelaria mexicana, mas também pela forte articulação do Brasil, o tratado proibia o desenvolvimento da tecnologia nuclear para fins militares na região. Desde então, a América Latina e o Caribe se converteram em uma zona de desnuclearização.
Em um protocolo adicional, estabeleceu-se que potências extrarregionais se submeteriam a esses termos, o que implicava em que elas não deveriam usar armas nucleares contra os países signatários. Portanto, a presença de submarinos nucleares dos Estados Unidos, para supostamente combater o narcotráfico venezuelano, é uma quebra de compromisso e coloca em risco a integridade da América Latina enquanto espaço livre de armamentos de destruição em massa.
A resposta imediata de Caracas foi ativar o seu sistema de Defesa, com fechamento de espaço aéreo, e o alistamento de civis para se juntarem às milícias e ao treinamento militar. A assimetria de forças pode, por um lado, dar a impressão de uma vantagem estadunidense no caso de um confronto com a Venezuela; por outro, a história mostra que nem sempre o poderio bélico é determinante para uma incursão bem-sucedida. Maduro parece saber disso e está disposto a armar militares e civis, lado a lado, para defender a soberania do país. Novamente, os exemplos históricos demonstram que as perspectivas humanitárias desse tipo de enfrentamento são tenebrosas.
Mesmo improvável, a eclosão de um conflito direto leva ao segundo motivo de preocupação para o Brasil. Do ponto de vista prático, haveria efeitos diretos sobre o território nacional, em especial na porção norte. Não interessa ao país ter tão próximo a uma fronteira já atravessada por distintas problemáticas a eventualidade de uma guerra, que geraria maior instabilidade e aumento da pressão migratória e humanitária.
“A diplomacia brasileira envidaria esforços por soluções pacíficas”
Para além das consequências diretas, a diplomacia brasileira envidaria esforços por soluções pacíficas, seja pela sua própria tradição institucional, seja pela disposição do governo do presidente Luiz Inácio Lula da Silva em buscar conciliações em distintos fóruns, a despeito das estremecidas relações de Brasília com os dois atores principais da contenda. Se o resultado fosse positivo, o país seria catapultado a uma posição ainda mais prestigiada enquanto player global de relevância.
Contudo, há de se considerar o pior prognóstico: um transbordamento do conflito para além do Caribe venezuelano, a participação (direta ou indireta) de potências extrarregionais, como Rússia e China e, por fim, a possibilidade de disputas violentas internas pelo poder em Caracas. Neste caso, a habilidade brasileira de costurar acordos possíveis diante de tantos fronts seria testada duramente, com riscos de prejuízos profundos à sua atuação mediadora no âmbito regional e global.
Como todo exercício hipotético, as perspectivas tendem a parecer exageradas. No entanto, em um mundo convulsionado, é legítima a indagação sobre a capacidade brasileira em exercer uma liderança regional pacífica. A presença de armas nucleares no Caribe é como uma fagulha em uma área inflamável, mas cujo potencial de combustão poderia ser neutralizado pelo Corpo de Bombeiros. Resta saber se o Brasil teria todas as competências e recursos necessários exercer essa nobre função, em um contexto tão desafiador.
*Carolina Silva Pedroso é docente do Departamento de Relações Internacionais da Escola Paulista de Política, Economia e Negócios da Universidade Federal de São Paulo (EPPEN-UNIFESP) e pesquisadora do Instituto Nacional de Ciência e Tecnologia para Estudos sobre os Estados Unidos (INCT-INEU).